domingo, agosto 28, 2005

2 Filhos de Francisco

O primeiro e único requisito necessário para entrar em uma sala de cinema e assistir a 2 Filhos de Francisco é perder o preconceito. Sim, o filme conta a trajetória da dupla Zezé di Camargo e Luciano. Sim, você vai ouvir música sertaneja. Muita. E provavelmente no fim da sessão sairá da sala com É o amor na cabeça. Mas não se assuste. Entre no cinema mais próximo e se deixe envolver pela história, porque ela vai além, muito além de propaganda para a dupla. Os fãs vão se divertir e se emocionar durante as duas horas de projeção. Os que não são fãs sentirão a mesma coisa. O filme não vai mudar opiniões sobre a música sertaneja, nem pretende fazer isso. O diretor estreante Breno Silveira acertou em cheio nesse ponto e a partir daí definiu o tom da história. Ela também tem sentido para aqueles que não gostam do som da dupla e as opções que o diretor fez para contá-la tornam óbvia sua intenção: atrair não só os admiradores, mas também o público não sertanejo. E talvez o mais eficaz dos artifícios para conquistar esse público tenha sido justamente a escolha da trilha sonora. Elaborada por Zezé e Caetano Veloso, conta com nomes renomados da MPB, como Maria Betânia e o próprio Caetano. Ouvir músicas rurais que não são da dupla, ou mesmo canções deles na voz de outros intérpretes facilita uma identificação do espectador que não é fã com a história, e confirma: a música de Zezé di Camargo e Luciano é uma coisa, o filme é outra bem diferente.
A primeira cena do longa, bem curta, mostra um show real, já atualmente. A câmera filma a multidão, mas não vemos os cantores. Ouvimos apenas suas vozes e a partir daí regredimos para 1962, quando começa a história dos dois filhos de Francisco. O espectador já conhece o fim do percurso, mas é exatamente o caminho que levou os dois irmãos ao sucesso notório de hoje que preenche o filme e surpreende o público. Francisco, vivido com um prazer perceptível por Ângelo Antônio, é um lavrador humilde, ignorante e fascinado pela música rural. Casado com Helena, muito bem interpretada por Dira Paes, é determinado desde o nascimento do primeiro filho (Zezé, ou melhor, Mirosmar) em fazer com que a partir de uma carreira musical ele possa ser alguém. Francisco é obcecado por essa idéia que acredita ser a única chance de uma vida melhor para os filhos. Por apostar de tal forma em algo que parece impossível, é visto como um louco. E realmente, apesar de os fatos serem reais, o personagem às vezes parece saído de uma fábula, tão incomuns são as atitudes que ele é capaz de tomar para investir em seu sonho. Troca pertences por instrumentos musicais para Mirosmar e Emival (os cantores mirins Dáblio Moreira e Marco Henrique), abandona a terra e se muda para Goiânia, onde a dupla poderia dar certo, cai no conto de um empresário picareta a quem confia os dois filhos (José Dumont), e por aí vai.
O longa de Breno Silveira tem o que falta a grande parte dos filmes nacionais, sobretudo os mais comercias como esse: um bom roteiro. É sim propaganda para a dupla, inegavelmente. Isso se torna óbvio principalmente nas últimas cenas, que mostram o Zezé e o Luciano reais com a família. E em alguns momentos (poucos e curtos, diga-se de passagem) não resiste e descamba para o melodrama ao rememorar a morte de Emival. Mas o que não falta ao filme são qualidades capazes de colocá-lo entre as mais corretas produções do cinema nacional mais recente. A primeira parte da projeção, amparada sobretudo em Francisco e nas crianças Mirosmar e Emival, atrai de cara o espectador, com doçura. A segunda, já focada no Zezé adulto, representado por Márcio Kierling, perde um pouco o ritmo. Ainda que não esteja mal no papel, Kierling às vezes é incapaz de despertar no público o carisma do ator mirim. Mas a esse ponto do filme o espectador já foi conquistado pela história, pela empatia entre Ângelo Antônio e a dupla infantil, que já não é a mesma entre Márcio Kierling e Thiago Mendonça, intérprete de Luciano.
2 Filhos de Francisco traz no enredo um Brasil rural que ainda não estamos muito acostumados a ver. A relação dos personagens com a conjuntura histórica é bem eficiente para ilustrar esse mundo. Há ótimas passagens e frases que mostram de forma engraçada a ignorância do povo simples em relação ao período da ditadura militar. A reconstituição de época em geral é boa. O figurino dos personagens durante a década de 80 é perfeito. O diretor foi muito feliz na escolha das cenas, capazes de contar a história de maneira precisa, sem delongas. Mérito, aliás, não só dele, mas também da montagem e da edição. Breno Silveira é direto no que quer dizer ao público. Para tanto faz uso de planos curtíssimos e de outros bem longos, sempre eficientes em passar ao espectador uma determinada idéia. Tudo isso substitui a linguagem verbal e contribui para não deixar o filme explicativo. Não é preciso usar sempre a fala dos personagens se há a possibilidade de recursos como close-ups, enfocando a expressão facial das pessoas e suas reações aos acontecimentos, planos-detalhe e sequências longas centradas, sobretudo, na linguagem corporal (como uma das primeiras cenas entre Zezé e Zilú). O elenco é em sua maioria excelente e os coadjuvantes são um espetáculo à parte. Lima Duarte, Jackson Antunes e José Dumont premiam o público com participações deliciosas. O filme, com orçamento de 6,3 milhões de reais, é uma grande produção para os padrões brasileiros. Durante os precisos 119 minutos que o espectador passar na sala de cinema assistindo à essa projeção pode ser que chore, dê gargalhadas e venha a admirar a trajetória dos sertanejos, ainda que não suporte a música que eles fazem. Excetuando-se os fãs de Zezé di Camargo e Luciano e os admiradores desse gênero musical em geral, é pouco provável que alguém saia do cinema direto para o show mais próximo da dupla. Mas 2 Filhos de Francisco, além de todas as suas inúmeras qualidades, tem um trunfo que não se pode negar: sabe envolver o público, conquistá-lo e fazê-lo se emocionar.

segunda-feira, agosto 22, 2005

Réquiem para um sonho

Réquiem é um termo fúnebre, associado ao ofício dos mortos. Em Réquiem para um sonho (Requiem for a dream, EUA, 2000), os personagens, embora não saibam, irão percorrer, cada um ao seu modo, um doloroso percurso repleto de ilusões, picos e quedas para verem seus sonhos irrecuperavelmente enterrados no final. A história começa a ser apresentada entre os créditos de abertura. Ao som de uma música instrumental extremamente angustiante, que sugere bem o tom do filme, acompanhamos os personagens de Jared Leto (Harry Goldsfarb) e Marlon Wayans (Tyrone C. Love) levando a televisão da mãe de Harry até a loja onde será penhorada. Não é a primeira vez que ele vende a televisão, o único escape de sua mãe velha e sozinha, interpretada por Ellen Burstin. Tyrone, Harry e sua namorada Maryon Silver (Jennifer Connely) são viciados em heroína e precisam de dinheiro para sustentar o vício. Aliás, essa é a premissa principal do filme dirigido por Darren Aronosfsky: vícios e os resultados que eles podem trazer.
É bem verdade que, analisando a história de forma mais ampla, ela pode soar exagerada. Mostra o vício chegando às últimas conseqüências. Oferece uma trágica destruição da vida dos protagonistas, sem espaço para esperanças de recomeço. Se o espectador enxergar o filme como uma previsão do caminho que todo e qualquer viciado em drogas, de anfetaminas a heroína, irá obrigatoriamente percorrer, vai provavelmente considerá-lo moralista. Mas Réquiem para um sonho acompanha a trajetória de quatro personagens, as suas histórias de destruição, e é a elas que me atenho. Por essa visão mais restrita, sem a preocupação de uma moral a ser passada para o público, o filme é angustiante. Um retrato triste da vida dos protagonistas durante três estações.
A história começa no verão. Harry e Maryon sonham em abrir uma loja de roupas. Assim como Tyrone, querem se dar bem na vida e ganhar dinheiro. Para isso os dois amigos, além de viciados, se tornam distribuidores de droga, um negócio promissor que a princípio tem bastante êxito, dando aos três a esperança de alcançarem seus objetivos. Enquanto isso, Sara, a mãe de Harry, recebe um telefonema e acredita ter sido convidada para aparecer em seu programa de TV favorito. Um pouco acima do peso, ela quer emagrecer para conseguir entrar novamente em seu vestido vermelho. Começa a tomar anfetaminas, emagrece, se sente bem e querida. Mas no outono começa a queda. Harry, Tyrone e Mary não estão mais prosperando como antes e seu vício incontrolável em heroína agrava os problemas. Sara está ainda mais magra e acaba se viciando nos remédios para perder peso. A realidade é cada vez mais sufocante e o inverno traz a morte para os sonhos de cada um deles.
O que afunda de fato os personagens de Réquiem para um sonho em vícios sem cura é a busca de algo que lhes dê sentido, de uma vida nova diferente daquela que os angustia. Darren Aronofsky faz uso de recursos competentes para compartilhar com o espectador essa sensação aflitiva. O filme é repleto de close-ups e planos subjetivos. As fantasias dos personagens são mostradas com frequência. Quando algum deles se droga é apresentada sempre a mesma seqüência, que se repete cada vez mais à medida que o filme transcorre. Os planos são em geral bem curtos, havendo mais de 2000 cortes (normalmente têm-se de 600 a 700). Em certos momentos a tela se divide ao meio e é possível que o espectador tenha dois pontos de vista diferentes de uma mesma cena. Esses artifícios habilmente utilizados fazem o público entrar nas alucinações dos personagens. O filme vai se tornando progressivamente mais angustiante, impressão acrescida pela trilha sonora. A cada instante parecem haver menos saídas. E o final da história vem confirmar o que Réquiem para um sonho é desde as primeiras cenas: incômodo, pesado, deprimente e chocante. É necessário um estômago forte para sair sem nenhuma perturbação desse filme.

quinta-feira, agosto 11, 2005

Desventuras em série

Cenas lindas. Personagens excêntricos e interessantes. Tragédia do início ao fim. Esse é o mundo de Desventuras em Série (Lemony Snicket's A Series of Unfortunate Events, EUA, 2004). Como o próprio narrador adverte, não espere elfos meigos ou desfechos alegres na história dos irmãos Baudelaire: três órfãos à mercê de um tio ganancioso e capaz de tudo para ficar com o dinheiro dos herdeiros. Desventuras em Série é mesmo uma história de horror para crianças. A narração é crua e tem um caráter documental, como se o narrador Lemony Snicket (Jude Law) relatasse fatos que testemunhou, de forma imparcial. Seu discurso, entretanto, vai assustando o espectador ao enfatizar freqüentemente quão trágicas são as desventuras das três crianças.
O filme é irônico desde a animação de abertura e tem um visual sombrio, puxado para o gótico. Irônico, sombrio e gótico? Isso não lembra alguém? Sim. O visual do filme, dirigido por Brad Silberling, empresta muito de Tim Burton. Parte da equipe já tinha inclusive experiência nesse área: o diretor de fotografia Emmanuel Lubezki foi indicado ao Oscar por A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça, o designer de produção Rick Heinrichs começou a trabalhar com Burton no curta Vincent e Collen Atwood foi responsável pelos figurinos de Ed Wodd e Marte Ataca. Desventuras em Série mostra de fato um estilo Tim Burton, embora com menos humor e mais crueldade. A fotografia e a direção de arte são incríveis, capazes de embasbacar. Os enquadramentos de câmera resultam em imagens que impressionam. E todos esses recursos técnicos são usados em prol da história, para favorecer a forma como ela é contada e as sensações que quer provocar na platéia.
Além de trazer um elenco cheio de participações especiais, contando com Meryl Streep, Dustin Hoffman e Billy Connoly, o filme tem Jim Carrey em momento peculiar de sua carreira. Como Conde Olaf, o tio vilão que é o terror de Violet, Klaus e Sunny Baudelaire, Carrey pela primeira vez consegue ser exagerado sem comprometer a produção ou seu papel. Aliás, as excentricidades do ator são perfeitamente cabíveis aqui e fazem do conde um personagem interessantíssimo, que enche a história. O papel de Carrey exige um intérprete capaz de se exercitar, criando muitas faces para um mesmo personagem, algo que ele realizou muito bem. Tais faces, inclusive, deveriam não parecer convincentes já que o Conde Olaf é um ator egocêntrico e absolutamente canastrão. Todos os personagens que cria para recuperar a guarda das crianças soam falsos e mal elaborados. São incapazes de enganar os pequenos, mas, para desespero desses, facilmente levados a sério pelos adultos que deveriam lhes garantir proteção.
Os Baudelaire estão realmente sozinhos em um mundo desconhecido. O fato de haverem personagens com senso de responsabilidade para cuidar das crianças não as deixa menos abandonadas. Seus falecidos pais nunca são mostrados no filme e tal artifício faz o espectador compartilhar com Violet, Klaus e Sunny as sensações de abandono e insegurança. Não fugindo à temática, o próprio projeto para transformar a série de livros de Daniel Handler em filme foi repleto de eventos desastrosos. Problemas de toda sorte, e que são uma história à parte, rondaram a pré-produção da saga dos Baudelaire. Mas ao contrário da história das três crianças órfãs, essa saga teve final feliz, rendendo um filme trágico e diferente, baseado nos três primeiros livros da série infantil. Triste, mas capaz de oferecer ao público mistério, suspense e aventura. Desventuras em Série é um belo filme feito para desagradar.

terça-feira, agosto 09, 2005

O Diário de Bridget Jones

Pensei que jamais escreveria uma crítica sobre O Diário de Bridget Jones (Bridget Jones´s Diary, EUA, 2001). Isto chega a ser um paradoxo, pois creio que qualquer um que me conheça ao menos superficialmente esperasse ver essa como a minha crítica principal, tantas foram as vezes que me ouviram dizer “esse é o filme da minha vida”. E exatamente por isso sou incapaz de emitir qualquer juízo de valor sobre ele! Mas eu (ainda) não sou uma crítica profissional, não tenho que ser analítica sempre, então me dou ao direito de ser absolutamente parcial e dizer “the truth about Bridget Jones. The hole truth”.
Eu poderia elogiar a direção, a adaptação do roteiro, as atuações, falar das indicações a prêmios que recebeu, fazer comparações com as outras comédias-românticas inglesas do mesmo estúdio e um monte de outras coisas... Mas de que importa isso tudo, se quando você é uma mulher e assiste a O Diário de Bridget Jones outras coisas chamam a sua atenção? Não importa se você é uma balzaquiana ou uma adolescente, todas as mulheres já se sentiram como a personagem de Renée Zellweger em algum, ou em alguns muitos momentos de suas vidas. E todas nós, inevitavelmente, suspiramos com o final feliz da mocinha acima do peso. Imaginamos que você não precisa ser perfeita para ter o seu happy end com um Mark Darcy.
Provavelmente por isso Bridget Jones seja um filme muito mais admirado pelo sexo feminino do que pelo masculino. Porque, por mais que soe exagerado, entende a alma feminina de uma maneira bem humorada, em momentos que os homens consideram fúteis. Observem que esse não é um discurso feminista, é simplesmente feminino. Quero apenas passar a idéia de que os homens, obviamente, não são mulheres. Por isso não sentem a mesma coisa que nós quando vêem Bridget em seus momentos mais decadentes, se sentindo feia, inadequada, traída e deslocada. Não entendem o que passa em sua cabeça quando ela é trocada por outra. Quando descobre que o mundo perfeito que demorara tanto tempo para conquistar, e parecia ser real, na verdade não existia.
Nos identificamos com ela de uma forma divertida e ao mesmo tempo triste. Seria muito mais bacana, inclusive, se na vida real pudéssemos também passar por nossas dores de cotovelo embaladas pelas músicas da trilha sonora do filme (outro aspecto execrado pelos homens em geral). Imaginem: aquele cara que parecia gostar tanto de você te deixa e de repente começa a tocar ao fundo Out of Reach. Você se entope de comidas que engordam enquanto pensa no quanto se enganou ou no quanto foi enganada. E de repente, quando a música para, você o vê surgir na porta da sua casa dizendo que se esqueceu de te dar um beijo. Todas as impressões ruins que estavam em sua mente se desfazem e vocês são felizes para sempre... ou pelo menos até o segundo filme.
Bom, a vida não é um filme. As comédias românticas são cheias de desencontros que precisam se resolver nos dez minutos finais da história, porque essa é a premissa. A realidade dura mais do que uma hora e meia e os desencontros necessitam de mais do que dez minutos para se resolverem. De qualquer forma, Bridget Jones dá às mulheres a sensação de serem refletidas na tela, e uma certa esperança de um dia vir a gostar de você mesma “just the way you are”. Então... “to Bridget, just the way she is”!

segunda-feira, agosto 08, 2005

Sin City

Para os que estão acostumados a ver o mundo das HQs no cinema em fitas como Homem Aranha, X-Men, ou Quarteto Fantástico, vale o aviso: Sin City – A Cidade do Pecado, como o próprio nome sugere, passa longe dos filmes protagonizados pelos heróis da Marvel, em temática e visual. O filme é um grande exercício técnico de construção de imagens, assustadoramente fiéis às histórias que lhe deram origem. Não existem sequer créditos de roteiro no longa: quadrinhos especialmente confeccionados foram usados como storyboard para a elaboração dos planos. Portanto, dizer que Sin City é uma adaptação das graphic novels publicadas por Frank Miller na década de 90 é balela. O filme é uma transcrição dos quadrinhos para as telas, resultando num visual excêntrico capaz de incomodar espectadores desavisados que entrem na sala de cinema sem saber o que esperar. Mas vai agradar muito aos fãs do cinema pop, ao estilo Quentin Tarantino: violência banalizada e caricatural, tão absurda que chega a divertir o público com as exageradas cenas, conduzidas por narrações sádicas.
A própria atmosfera dark da série de quadrinhos que lhe deram origem faz de Sin City, acima de tudo, um grande filme noir, recheado de homens durões, mulheres fatais, escuridão e suspense. O mundo criado por Frank Miller é sujo e ausento de maniqueísmos morais. Na cidade do pecado, é cada um por si. As mulheres são tão belas quanto perigosas, a violência e o homicídio são quase inevitáveis e a corrupção tem lugar comum. A partir dessa premissa se desenvolvem as tramas. O longa apresenta um breve momento inicial para introduzir o espectador no ambiente de Sin City. Mas são as histórias do ex-lutador de rua Marv (Mickey Rourke), do misterioso Dwight (Clive Owen) e do policial honesto Hartigan (Bruce Willis) que movem o filme. Há inserções divertidas de elementos de uma trama em outra, apesar de elas não terem obrigatoriamente uma conexão. Robert Rodriguez pretendia inclusive conectá-las a princípio, mas tal idéia acabou não se mostrando viável. Entretanto, existe em comum o que de fato move os três protagonistas durões: o desejo de vingança ou proteção de suas mulheres em apuros na cidade do pecado, ainda que tais beldades não sejam exatamente indefesas.
Sin City é uma produção peculiar desde sua criação, e isso se mostra já nos créditos de abertura. Para garantir a fidelidade do filme às graphic novels, Robert Rodriguez fez questão de alçar Frank Miller ao posto de co-diretor. Como o sindicato não permite a existência de tal função, Rodriguez preferiu abdicar de sua filiação para manter Miller ao seu lado na condução do longa. E esse não participa do filme apenas como roteirista (se podemos assim dizer) e co-diretor. Frank Miller faz ainda uma pontinha como um padre que ouve as confissões de Marv. Outro convidado ilustre que colaborou em Sin City foi Quentin Tarantino, dirigindo a irônica seqüência de Clive Owen e Beniccio Del Toro tendo uma conversa no carro em movimento.
A perfeição visual do filme é tão grande que aparenta por vezes comprometer a narrativa. Mas se Robert Rodriguez almejava fidelidade na transposição de Sin City dos quadrinhos para as telas, foi exatamente o que conseguiu. E não só nas imagens, mas em todo o universo que foi capaz de criar, desde a escolha dos atores, fisicamente parecidos com seus personagens, até a elaboração das narrações. Embora sejam mais longas no filme, essas mantém o espírito das graphic novells: ácidas, fortes, repletas de um humor cortante.
A forma que Rodriguez escolheu para dar vida a uma série de quadrinhos não é superior e nem inferior aos formatos que o cinema conheceu anteriormente nesse quesito. É apenas uma opção estética do diretor, que traz em sua fórmula nomes significativos em Hollywood, referências pop, muita tecnologia digital e publicidade. Com todo esse universo criado em volta da história, o mínimo a ser dito é que Sin City vale o seu ingresso de cinema. E merece ser visto repetidas vezes, pois tem um belo valor como experiência cinematográfica.

Beleza Americana

Beleza Americana (American Beauty, EUA, 1999) foi o primeiro filme dirigido pelo diretor Sam Mendes, que vinha de uma vasta experiência teatral. Sucesso de público e crítica, o filme convidava o espectador a olhar mais de perto a vida de um casal suburbano comum norte-americano. Traz como protagonista o quarentão Lester Burham (Kevin Spacey, em aclamada interpretação), um homem frustrado, que se sente impotente perante sua vida. Sua esposa Carolyn (Annete Benig, não menos elogiada) é corretora de imóveis e valoriza antes de tudo os bens materias e a aparência. Lester é um homem anestesiado, que desperta ao conhecer Angela Hayes (Mena Suvari), amiga de sua filha adolescente Jane (Tora Birch), que se torna para ele uma espécie de Lolita. Estimulado pela beleza da jovem, Lester começa a mudar sua vida e quebrar o mundinho de aparência em que há muito vivia com sua família. Pede demissão do emprego monótono, após chantagear o chefe, e passa a gastar grande parte de seu tempo fazendo exercícios físicos e fumando maconha em sua garagem. O basta que Lester dá em sua antiga vidinha de estabilidade é uma tentativa de dar a volta por cima. Mas como resultado dessa reconstrução, ele acaba desestruturando a vida de muitos ao seu redor. Todo esse incômodo causado culmina em seu assassinato. O filme tem início com a narração de Lester, já morto, e a partir disso faz-se uma retrospectiva cronológica que mostra ao público o que levou o personagem até aquele ponto. À exemplo de Crepúsculo dos deuses, de Billy Wilder, com seu Joe Gillis, Beleza Americana também mostra ao espectador a trajetória de um homem que já se encontra morto no começo da história. E à medida que a trama vai se desenrolando, vão surgindo os suspeitos do crime: sua esposa Carolyn, fustrada com o fim da estabilidade que havia construído, seu novo vizinho, o Coronel Fitts (Chris Cooper), um militar enérgico e reprimido, e Ricky (Wes Bentley), o esquisito filho do militar, que vendia drogas e nutria uma atração por Jane.
American Beauty é um tipo de rosa sem cheiro e sem espinhos, muito cultivada nos Estados Unidos. O título do filme é uma metáfora ao vazio do cidadão americano típico. Beleza americana sugere uma beleza para consumo, uma imagem a ser vendida, e é esse o grande cerne do filme de Sam Mendes: uma beleza de vitrine, para ser admirada de fora. Por isso o slogan “look closer…” que o filme traz. É uma ácida, porém sutil crítica à sociedade norte-americana de consumo: a aparência por fora é soberba e harmônica, sugerindo a perfeição dos anúncios publicitários, mas por dentro as coisas estão em pedaços, e a imagem de felicidade estável é construída em cima de vidas frustradas, que por terem se perdido sentem uma enorme necessidade de bens materiais a serem expostos.
Durante todo o filme vemos alusões à rosa. A cena em que Lester está no ginásio assistindo a filha em uma apresentação de “cheerleaders” e, vendo Angela pela primeira vez, é atingido por pétalas de rosas vermelhas, marca a produção. O vôo das pétalas foi uma bela proesa realizada pelo diretor de fotografia, Conrad L. Hall. Algumas cenas depois, em um sonho de Lester, vemos Angela imersa em uma banheira cuja água está coberta por pétalas de rosas rubras. É um novo momento de forte presença da rosa, e da cor vermelha, que também marca o filme.
A película foi o primeiro filme de orçamento médio a sair nos cinco últimos anos de funcionamento da DreamWorks anteriores a 1999. Mendes acabou retirando quase cinco minutos do fim do filme na edição final, alterando radicalmente o fim da história. Beleza Americana foi sucesso de crítica nos EUA à época de seu lançamento. A comédia dark sobre a vida de uma típica família de classe média americana vista por dentro caiu nas graças de público e críticos, ocupando lugar na história do cinema como uma respeitável produção, que merece, sim, um olhar mais de perto.

O espanta tubarões

O espanta tubarões (Shark Tale, EUA, 2004) é um filme interessante. Não tem o glamour de outras animações recentes como Procurando Nemo ou um enredo inovador como Shrek. Mas traz um sabor a mais para os cinéfilos de plantão, que podem se deliciar com as inúmeras sacadas sobre filmes e papéis relacionados aos atores que dublam os personagens principais do desenho. Os peixinhos e tubarões têm muito da personalidade dos próprios atores, ou de momentos de suas carreiras. As alusões a O Poderoso Chefão são claras e bem divertidas. Don Lino, o comandante dos tubarões, traz até mesmo a pinta de Robert De Niro, que oferece uma dublagem carregada do sotaque italiano de seu Vito Corleone na segunda parte do filme de Coppola. O tubarão carcamano tem o mesmo apego à família e aos seus valores, seus sócios lhe oferecem a mesma forma de cumprimento e o mesmo temor e respeito que são oferecidos a Don Corleone. Em determinado momento, um dos personagens chega a dizer “um desses capangas apagou meu tio Vito”.
Mas, apesar de tantas referências a O Poderoso Chefão, O espanta tubarões é um típico filme de Will Smith, que dubla o peixe protagonista Oscar. A trilha sonora e as referências hip-hop são bem o espírito do astro. Aliás, melhor seria dizer que a animação da Dreamworks é de fato uma mistura dos filmes de Smith com as comédias-românticas protagonizadas por Renée Zellweger, que faz a voz da peixinha Angie. E isso o tubarão vegetariano Lenny (voz de Jack Black) constata ao dizer a Oscar, no auge de tensão da história: “é o filme clássico”. A certo ponto tudo o que o atrapalhado e divertido personagem de Will Smith quer é ficar com a mocinha (ou melhor, peixinha) que lá para o desenrolar da história descobre que ama. E a sem sorte no amor personagem de Renée ganha sua cara metade no desfecho da trama. Isto parece um tanto quanto familiar?
O interessante é que essas auto-referências não soam de maneira nenhuma clichês ou forçadas. Ao contrário, são capazes de divertir muito o público que absorve as sacadas. Um ótimo momento é quando Oscar sai da boca do tubarão e diz para a câmera “you had me at hello”, uma das frases mais célebres do cinema, dita por Renée em Jerry Maguire. No quesito referências, há ainda piadas com os lábios de Angelina Jolie, que dubla a “peixe fatalle” Lola, e alusões a Titanic, como o quadro de Rose pendurado na parede do tal navio onde Don Lino reside. Mas nem só disso vive o filme. Há piadas não referenciais que garantem boas risadas. Lenny é um tubarão vegetariano, e em seu meio isso é tão embaraçoso e difícil de lidar quanto em nossa sociedade é o homossexualismo. O espanta tubarões é diversão garantida. Leve e inspirado, para qualquer idade ou gosto cinematográfico.

Garotos Incríveis

Garotos Incríveis (Wonder Boys, EUA, 2000) é um dos filmes mais incríveis (sem trocadilhos infames) realizados nos últimos tempos. Dirigido por Curtis Hanson, de Los Angeles - Cidade Proibida, é de uma sutileza poética, ou de uma poesia sutil, não sei exatamente dizer. Talvez seja de fato as duas coisas, mas o certo é que o filme tem alma e inteligência. E por ser tão peculiar, partindo de situações fantásticas para mostrar a personalidade e os conflitos de cada um de seus personagens, grande ponto positivo do filme, Garotos Incríveis acabou sendo subestimado por muitos. As desventuras em que se insere o protagonista Grady Tripp, um ótimo papel nas mãos de Michael Douglas, dão ao filme uma suspensão que pode mesmo soar inverossímel. Afinal, tentar esconder um cachorro morto por acidente e recuperar um casaco usado por Marlyn Monroe em seu casamento, na companhia de um aluno excêntrico (Tobey Maguire), não é exatamente o que se espera do final de semana de um professor universitário de literatura (Douglas). Mas é justamente acompanhando esses dias incomuns de Tripp que tomamos conhecimento do homem perdido e sem rumo que ele é na verdade.
Um filme leve, com tanta coisa para ser descoberta nas entrelinhas, é difícil de ser admirado se o espectador se ater à superfície. Corre-se o risco de não perceber o filme envolvente e inebriante que está diante de você. E toda a bela equipe oferece um trabalho delicioso, desde a adaptação do roteiro, baseado no livro de Michael Chabon, até os atores e a direção. Michael Douglas está perfeito no papel do protagonista e é auxiliado com maestria pelo elenco coadjuvante, que conta com Robert Downey Jr, Tobey Maguire, Francis McDormand e Kate Holmes, muito bem em seus papéis. A trilha sonora é um espetáculo à parte. Entre as várias músicas marcantes está a vencedora do oscar Things have changed, composta por Bob Dylan especialmente para a fita. O resultado desse belo trabalho é um filme humano e delicado que merece ser visto, revisto e muito valorizado!

Estrada para perdição

Estrada para perdição (Road to Perdition, EUA, 2002) não é um filme surpreendente, mas nem por isso perde seu valor. O próprio título, uma metáfora do lugar ao qual o matador Mike Sullivan (Tom Hanks) e seu filho Michael (Tyler Hoechlin) se dirigem após o assassinato do restante de sua família exibe a moral da história: neste caminho percorrido não há redenção. Para enterrar o passado e seguir a vida na tranqüila cidade de Perdition, algumas dívidas devem ser cobradas por Mike e seu filho, de onze anos, estará irremediavelmente envolvido nesse acerto de contas.
Sam Mendes já havia demonstrado ser um bom diretor em Beleza Americana e em seu segundo filme mostra uma boa habilidade técnica. Estrada para perdição oferece planos belíssimos, que valorizam o filme e engrandecem a imagem na tela. A história é noir por excelência, mas a fotografia, e até mesmo a trilha sonora, deixam o filme menos sombrio em alguns momentos. Aliás, esses são dois aspectos técnicos que contribuem muito para valorizar a obra de Mendes: fotografia e trilha são clássicas, e enchem os olhos e ouvidos. Logo no início do filme há uma cena onde a família Sullivan está jantando que mostra um plano muitíssimo parecido com o da marcante cena do jantar dos Burham em Beleza Americana. O enquadramento da câmera é idêntico. É um momento rápido, sem grande relevância no filme, mas que pode sugerir algo como a marca de um diretor.
Estrada para perdição é um drama com muitos pontos bons. Mas ainda que não fosse possível enxergar nenhum valor no filme de Sam Mendes, ele já valeria a pena pela simples presença de Paul Newman no elenco. Com trinta, quarenta ou mais de setenta anos, Newman é sempre uma boa razão para se ver um filme!