sábado, fevereiro 25, 2006

Crash - No Limite

Hoje vou poupar vocês dos meus subterfúgios e excessos de caracteres, porque coloquei outro para fazer o trabalho sujo no meu lugar. Aqui vai uma análise de Crash por Felipe Sembalista: curitibano, alucinado por axé (aliás, deve estar se perdendo em alguma micareta nesse exato momento), companheiro de empreitadas cinematográficas, o cara que sabe mais sobre a história do Oscar que a própria Academia. Portanto, levem esse rapaz à sério.
Eu volto aí depois com Capote, concluindo a lista dos longas que brigam pelo Oscar de melhor filme na noite do dia 5 de março.
Com a palavra, Felipe.




Timidamente recebido na época de sua estréia em território nacional, o filme Crash – No Limite (Crash, EUA, 2005) retorna às salas de exibição depois de suas 6 indicações para o Oscar deste ano, incluindo aí a categoria de melhor produção do ano. Levando em consideração que as reprises do filme geralmente estão sendo feitas em reduzidos horários nos grandes complexos multiplex das capitais brasileiras, muitos cinéfilos devem estar se perguntando se vale a pena fazer um esforço para conferir o filme. A resposta é sim.
Desigualdade social, desrespeito, fanatismo étnico e religioso, preconceito racial e corrupção são apenas alguns dos importantes temas que o filme consegue abordar durante as cerca de duas horas de projeção. E consegue abordar de forma inteligente, sem cair em clichês ou chavões desnecessários. Os personagens do filme são bem variados, e vão desde uma família de descendência árabe até um casal da burguesia da cidade, passando por dois marginais negros dos guetos, um astro de cinema, policiais corruptos e um casal de classe média-baixa com uma filha. Nenhum dos personagens, no entanto, é estereotipado. Existe profundidade psicológica em cada um deles, o que os faz ter vida própria e personalidade.
Esse traço, aliás, confere ao desenrolar do filme uma característica pouco utilizada (até mesmo pela sua complexidade), mas muito interessante: não existe um ator ou atriz principal na trama. A história não gira em torno de um ou de outro personagem, mas sim de todos eles paralelamente e de forma a unificar seus contextos em uma única abordagem, que é a da sociedade. Até por esse motivo, a única indicação do filme nas categoria de atuação foi para Matt Dillon, como ator coadjuvante. Grosso modo, portanto, o filme consegue entrelaçar o cotidiano de todas essas pessoas tocando em temas étnicos e raciais, como a xenofobia e o racismo; e também quão maléficos podem ser estes para a sociedade como um todo. Méritos, aliás, para o diretor do filme, Paul Haggis, que já em seu trabalho de estréia prova que tem muitos méritos e um futuro promissor (assim esperamos).
A montagem do filme é excelente. Cronologicamente, a história se desenrola em um espaço de 36 horas, com uma multiplicidade única de personagens e situações, e mesmo assim o espectador não perde o fio da meada para ter que repensar e relacionar um acontecimento com outro. Igualmente destacável é a canção do filme, de título In the Deep, executada no final da projeção (mas não nos créditos, como é comum) e que se encaixa muito bem no contexto das imagens. Aliás, essa canção concorre ao Oscar ao lado de Traveln` Thru, do filme Transamérica (ainda inédito no Brasil) e It`s Hard Out Here for a Pimp, do filme No Ritmo De Um Sonho (que deve estrear no próximo dia 3 de março).
Certamente o espectador não sairá do cinema indiferente. Seja em função do questionamento social que o filme trata, seja em função das várias seqüências tensas e imagens marcantes, seja pela forma com que a história se apresenta em termos de linha narrativa ou das atuações excelentes dos atores, ele significará muito mais do que uma simples produção rotineira e industrial. O título? Pois é, ele fará bem mais sentido após o término da sessão do que a tentativa de elucidação através do subtítulo da versão brasileira (No Limite). Nesse ponto, nossos colegas lusos foram mais pertinentes, com o título Colisão.Com um ritmo agradável, não excessivamente longo, firme e uma abordagem única para temas importantes e que nos afetam diretamente, o filme é uma grata surpresa para quem se dispuser a encarar as poucas opções de horário que os cinemas comerciais estão (infelizmente) dedicando à fita. Sem sombra de dúvidas, um dos melhores filmes do ano passado.

domingo, fevereiro 19, 2006

Johnny e June

Gandhi deu o Oscar para Bem Kingsley. Virginia Woolf para Nicole Kidman. Bella Lugosi para Martin Landau e Ray Charles para Jaime Foxx. Será que o lendário cantor Johnny Cash fará Joaquin Phoenix levar a estatueta em 2006? E a queridinha de Hollywood Reese Whiterspoon será oscarizada por seu desempenho como June Carter? Muitas perguntas, nenhuma resposta por enquanto. E se pensarmos bem, o Oscar não tem tanta importância assim. Phoenix não parece estar preocupado com isso. Mais interessado nos meios do que nos fins, como de costume nem se incomodou em conferir o resultado de seu trabalho. “O que me interessa é a experiência de interpretar, e não me ver atuando”, explica. O ator não tem mesmo motivos para sentir-se inseguro em relação ao papel que lhe valeu o Globo de Ouro. Foi o próprio Johnny Cash, que se tornou fã de Joaquin depois de vê-lo como Commodus em Gladiador, quem o escolheu para personificá-lo no cinema. O mesmo aconteceu com Reese, escolhida por June Carter para representá-la. Os dois músicos, já falecidos, pareciam estar mesmo afinados na vida real, pois passaram a responsabilidade de serem reconstruídos na tela para as mãos de um casal fictício dono de uma química adorável.
Johnny e June (Walk the Line, Estados Unidos, 2005) não traz nada que nunca tenha sido visto antes. Estão lá todos os elementos de uma cinebiografia clássica, que levaram milhões de espectadores às lágrimas recentemente em Ray e que o cinema brasileiro soube nacionalizar tão bem no ainda mais atual Dois Filhos de Francisco (embora seus protagonistas sejam menos adeptos do “sex and drugs” que os dos colegas de tema): a infância pobre e sofrida, o amor precoce pela música, o talento digno de projeção, o álcool, a bebida e as mulheres que chegam junto com a fama, a decadência por conta dos vícios e, claro, a volta por cima para demonstrar como a celebridade em questão foi uma personalidade digna de admiração, apesar de todo e qualquer deslize. Mas a biografia de Johnny Cash, o homem que sacudiu a música country com a rapidez de seus acordes e com a obscuridade de suas letras, não pretende ir mais a fundo, optando pelo romance e se afastando do melodrama declarado de seu companheiro Ray. E quando eu digo romance, subentendam-se aí todos os clichês da palavra: redenção romântica depois de muito sofrimento, premiada com um belo final feliz, ainda que uma abordagem dessas seja apenas um recorte da história real. O que não é ruim, haja visto que essas são apenas características intrínsecas ao gênero. Não é que faltem momentos tensos no desenrolar da trama, mas Johnny e June é por excelência uma história de amor, bem desenvolvida, com protagonistas célebres, como sugere o aparentemente ridículo título em português, capaz de definir a índole desse filme com mais eficiência do que o título original.
June Carter ganhou tanta importância na trama quanto Johnny Cash. Mais: sem ela essa história não existiria. June aqui é a alma do músico. Companheira de palco, melhor amiga, maior inspiração, grande paixão, salvação de sua vida que desanda. E o que há de original no filme dirigido por James Mangold (Garota-Interrompida) é o desempenho do casal principal, que faz a trama pulsar, tornado-a verdadeira e envolvente. Joaquin Phoenix encarna Johnny Cash - um homem introspectivo, autêntico e incapaz de se manter na linha - com uma perfeição assombrosa. O próprio ator cantou todas as músicas em cena e é de arrepiar quando ouvimos sua voz forte anunciando “I´m Johnny Cash”. Impossível não acreditar em suas palavras. Todos os seus momentos em cena são grandiosos e cheios de personalidade. Reese Whiterspoon faz um bom trabalho como June Carter, explorando seu carisma e mantendo um timing impecável.
Como todo e qualquer filme cujo protagonista é um astro da indústria fonográfica, a música emoldura toda a história, preenchendo as ligações entre as cenas, os saltos temporais e todo o resto. E a trilha é deliciosa. Há closes interessantes, que parecem nos aproximar da história e de seus personagens. O figurino é deslumbrante. A narrativa flui de forma prazerosa, com um ritmo bom de acompanhar. Pode ser que os grandes fãs do cantor se frustrem pela imersão tão rasa em sua intensa biografia. Johnny e June é simpático, gostoso, umas vezes consegue nos comover, outras vezes consegue nos animar. Mas não tem nada de explosivo. Ao contrário do mito que homenageia, esse filme anda na linha. E com seu jeito morno sabe conquistar.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Boa Noite e Boa Sorte


Era uma vez na América um sujeito bonitão e extremamente charmoso. Clooney, George Clooney era seu nome. Começou a vida de estrela arrebatando corações na TV e, como bom galã que era, não demorou a se lançar no cinema. O que o mundo ainda não sabia é que aquele rostinho bonito encobria um espírito subversivo e foi se tornando claro que o sujeito queria mais e mais da vida. Foi caminhando aos poucos. Lançou-se na aventura de produzir o remake de Onze Homens e Um Segredo (experiência tão bem sucedida que impulsionou uma continuação) e deu os primeiros passos na direção em Confissões de Uma Mente Perigosa, com o roteiro de Charlie Kauffman. Ganhando credibilidade aos poucos e se aproveitando estrategicamente da condição de estrela, George imaginou que estava na hora de tomar medidas mais drásticas. Então, numa cartada brilhante, achou por bem cutucar passado e presente norte-americanos com seu fantástico Boa Noite e Boa Sorte (Good Night and Good Luck, Estados Unidos, 2005).
Clooney lançou mão de seu fascínio pelo jornalismo investigativo de opinião, vestiu seu filme de preto e branco e reuniu um time de atores de primeira para voltar aos anos 50 e remontar a luta de Edward Murrow, o mais importante dos âncoras da CBS, contra o senador Joseph McCarty, famoso pela “caça às bruxas” que empreendeu em direção à suspeitos de atividades comunistas com o fim da Segunda Guerra. Depois dos concisos 93 minutos que duram a projeção fica fácil entender porque o astro merece o respeito de que goza no momento. São raros no cinema aqueles que têm o dom de incomodar com habilidade e elegância. E polemizar em Boa Noite e Boa Sorte é uma questão de arte. Não satisfeito em ir contra a direita política, ele ludibria também certos costumes narrativos a que nossos olhos estão acostumados, realizando mudanças de foco de um plano para outro. O senador McCarty aparece em cenas de arquivo, por via de uma montagem competente, e as imagens fictícias têm a mesma qualidade das imagens reais da época. Essa semelhança cria um aspecto homogêneo, deixando o que é visto na tela mais fluido e uniforme. Ou seja, as imagnes reais e fictícias não destoam muito entre si. O herói Edward Murrow é interpretado por David Strathairn, que arrematou indicações à uma série de prêmios pela atuação sóbria e tensa. Mas o "herói" aqui ganha um espaço peculiar. O roteiro de Clooney - que também atua no filme - baseado em um texto anterior de Grant Heslov, não desenvolve a vida pessoal do protagonista ou de nenhum dos personagens (sua imersão na privacidade do casal vivido por Robert Downey Jr. e Patricia Clarkson não vai além de um mínimo necessário), concentrando a trama no ambiente de trabalho da rede de televisão. Focalizando os holofotes no conflito discursivo entre McCarty e Murrow, o filme é dinâmico e não se interessa em apelar para uma identificação do público com personagens que tenham sua personalidade esmiuçada.
O cuidado com a reconstituição do momento histórico é primoroso. Figurino, fotografia, cenografia, trilha sonora foram elaborados com esmero e o filme edifica um ambiente de época impecável. Na década de 1950 a televisão estava surgindo e testemunhava seu auge enquanto o rádio ficava para trás. As canções que de tempo em tempo embalam a trama garantem charme e nostalgia. O longa é verborrágico, mas sabe quando e o que dizer. A crítica à mídia como um entretenimento vazio, um objeto de alienação que explorava espetáculos fúteis, remetendo à velha idéia de panis et circus para evitar que o espectador pense demais, é clara. E o que mais incomoda é ter consciência de que essa perspectiva ainda não mudou. As analogias à postura norte-americana contemporânea também são nítidas: uma “democracia” que se vale de meios erroneos para justificar seus fins e manter à todo custo a estabilidade da “vida americana”, pulverizando os antígenos daquela sociedade.
Acompanhando a luta corajosa de Murrow para mostrar em rede nacional a falta de coerência do macarthismo, entramos no campo da necessidade de liberdade de expressão. E testemunhamos também o imenso poder da imprensa. Afinal, tudo é edição. Os meios de comunicação não têm apenas uma grande força, mas também uma enorme responsabilidade. A mídia pode e deve ser usada para defender causas justas. Mas e se, como indaga o personagem de Robert Downey Jr., eles não estiverem defendendo o lado certo da questão? Nada tem um poder tão grande de influenciar e manipular mentes quanto a mídia. Por isso, antes de concordar ou discordar com qualquer idéia que nos é transmitida, é preciso desenvolver uma consciência crítica. Por mais que se busque uma postura democrática dentro de qualquer meio de comunicação, sua engrenagem é movida inevitavelmente pela escolha de informações: daquilo que merece virar notícia, de como ela deve ser abordada, da posição que será tomada frente à ela. É uma questão ética delicada e perigosa. Ouso dizer que, pelas discussões que levanta, Boa Noite e Boa Sorte poderá ser um dia considerada uma obra tão obrigatória para a formação de um comunicólogo quanto é hoje Cidadão Kane - repito, pelo tema que engloba e não, de forma alguma, por revolucionar a maneira de fazer cinema. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
George Clooney voltou ao passado para nos trazer o presente. E já recebeu o ultimato de uma produtora: se continuar insistindo em colocar seus filmes no mercado não será mais contratado. Pior para Hollywood e seu senso comum de cinema, melhor para o público, que ganha estilo e qualidade. Sem medo de cair na retórica, peço encarecidamente que alguém lembre Steven Spielberg que para causar polêmica com jeito não é necessário um orçamento absurdo, cenas complicadas e muitas explosões. Um grande espetáculo incomoda muita gente, mas inteligência e classe incomodam muito mais.

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

The war has began

Wolverine. Garras à mostra. Sombra e escuridão. Uniforme preto colante.
26 de Maio.
Mal posso esperar...
Como bem disse o (anti)herói lá pelo fim do último filme: I´ll take my chances with them.

domingo, fevereiro 12, 2006

Ponto Final - Match Point

Woody Allen é um sujeito curioso. Tem a notável e notória capacidade de reinventar a mesma temática há quarenta anos: neuroses amorosas urbanas, preferencialmente as suas, interpretadas por ele mesmo ou por alguém que lhe sirva de alter-ego. Realiza tal proeza com um talento que lhe valeu o status de gênio dentro do cinema, embora o sabor de suas produções mais recentes já não seja o mesmo dos áureos tempos de fertilidade criativa. Polêmico por natureza e opção, avesso à religiosidade e dono de um humor auto-depreciativo único, lança um carisma espaçoso. Difícil não simpatizar com um cara desses.
Em Ponto Final (Match Point, Inglaterra, Estados Unidos, Luxemburgo, 2005) Allen abandona sua Nova Iorque habitual, as neuroses e o egocentrismo para dirigir na Inglaterra um roteiro brilhante, que resgata as boas e velhas tramas sobre ligações perigosas de meados do século passado e lhe valeu a indicação para o Globo de Ouro e para o Oscar na categoria. A história intrincada de drama e suspense trata de paixão, luxúria e ambição, tendo como mote inspiradas reflexões sobre as vantagens e venturas da sorte. É preferível ser sortudo a ser bom.
Jonathan Rhys-Meyers está excelente como o protagonista Chris Wilton, um ex-jogador de tênis profissional que começa a dar aulas em um clube privativo de Londres. Lá conhece Tom Hewett (Mathew Goode), um jovem de alta classe de quem se torna amigo, e cai nas graças da irmã do rapaz (Emily Mortimer). Essencialmente ambicioso, e não interesseiro, ele começa a ter acesso a um meio social e cultural muito distinto do seu – aquele ambiente aristocrático de pompa e tradição britânico que o cinema já se encarregou de nos apresentar. Imerso nesse mundo ao qual se acostumou com engenhosa facilidade, Chris põe em risco sua vida confortável ao desejar a noiva do cunhado (Scarllet Johansson, num papel com traços de femme fatale).
A direção de Woody Allen é tão boa quanto a trama que ele engendrou e o final espetacular evidencia o indisfarçável humor irônico e ácido que só uma mente insana como a dele seria capaz de criar. Atenção admiradores da boa arte: Allen não morreu. Em seu Ponto Final (péssimo título em português, verdade seja dita) ele está vivo como há muito tempo não aparentava. O prazer é todo nosso.

sábado, fevereiro 11, 2006

O Segredo de Brokeback Mountain

Insistir em levar às telas um roteiro perigoso que vinha sendo sumariamente recusado por produtores desde o fim da década de 90 não é lá uma idéia das mais sensatas. Apostar em dois atores jovens, bonitinhos e adorados por adolescentes frenéticas para interpretar cowboys americanos – um dos mais fortes arquétipos da virilidade masculina – que vivem um intenso caso de amor por vinte anos, seria então insanidade declarada. Mas foi assim que O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, Estados Unidos, 2005) levou milhares de espectadores aos cinemas para mostrar que coragem não faz mal à indústria e que o amor não precisa ser clichê para soar universal. Esse é um filme peculiar. Não por ser inusitado ao extremo, mas por trabalhar sua premissa com uma sensibilidade aguçada, respeitando os sentimentos que ela envolve sem se preocupar em rotulá-los. Um romance único, diferente dos que estamos acostumados a ver, com um poder de comoção absurdo, quase inexplicável. E de uma idéia que tratada de outra maneira poderia fazer barulho demais, gritando em nome de uma causa e remetendo à facilidade das apologias, somos agraciados com o silêncio e com a suavidade de murmúrios.
Brokeback Mountain não é um filme gay. Seria medíocre demais reduzir uma obra tão densa a isso. “Estamos apenas contando uma história de amor, sem adjetivos”, foi o que disse Heath Leadger, um dos protagonistas da trama. E não haveria definição melhor. O que vemos narrado aqui é essencialmente um amor impossível, pouco importa se gay, hétero ou simpatizante. Jack Twist (Jake Gyllenhaal) e Ennis Del Mar (Leadger) se conhecem no verão de 1963, quando tornam-se pastores de ovelhas na montanha Brokeback. No isolamento daquele lugar nasce uma paixão incontrolável. Com o fim do trabalho, Ennis e Jack se separam e seguem caminhos distantes. O primeiro, já de casamento marcado, constrói uma vida acomodada com a esposa Alma (Michelle Williams, que fez por merecer suas indicações à atriz coadjuvante), enquanto o segundo se casa com uma rica moça texana (Anne Hathaway). Quatro anos mais tarde eles voltam a se encontrar, retomando o relacionamento que nunca esqueceram.
Essa não é uma história de fácil absorção. O amor que testemunhamos exala uma intensidade que pode levar tempo para ser digerida. E o filme escancara o preconceito dentro da sala de cinema: nas duas sessões a que assisti, risadas nervosas que mostravam o incômodo causado pela falta de costume com o que estava sendo mostrado na tela - o que, no mundo de hoje, chega a ser um absurdo digno de dó - quebravam o silêncio das lindas cenas da projeção. Aos “espirituosos” de plantão, fica a dica: na próxima, abandonem o recinto a tempo e se refugiem na sessão de Vovó zona 2 ao lado. O filme não procura agredir ou chocar o público para abrir a polêmica que ronda sua premissa. Essa seria uma saída fácil. A relação entre Jack e Ennis é difícil de ser definida. É necessária, vital, delicada e agressiva ao mesmo tempo. É bonito ver aqueles homens tão másculos – sim, eles o são – nos momentos de carinho (e os enquadramentos são grandes responsáveis por isso, mérito não só do diretor Ang Lee, mas também da fotografia). E angustiante vê-los em momentos brutos impulsionados pelos sentimentos incontroláveis com os quais ainda não sabem lidar. Tão angustiante quanto é para eles. Love is a force of nature, diz o emblema do filme. É assim a paixão dos dois cowboys: não se pode evitar. E permanece intensa, incapaz de ser controlada, à margem de todo o resto da vida real. Prazer e sofrimento convivem em um amor difícil, cada vez mais insustentável, mas ainda essencial. A rotina é levada por carinho fraternal, conveniência ou por uma obrigação de tocar a vida da maneira esperada. Ennis, com a criação grosseira e rude que teve, é um homofóbico. Ao contrário de Jack, que quer a todo custo assumir o relacionamento, ele não aceita o que sente, impondo a si mesmo uma vida solitária de punição como preço a ser pago por não evitar aquilo.
O contraponto entre as personalidades dos dois é fundamental e os atores conseguiram desenvolve-lo muitíssimo bem. Num filme que se apóia tanto nos olhares – e, mais ainda, em quando eles são evitados - nos longos silêncios, naquilo que não é dito por palavras, mas pelas menores sutilezas da ação, os protagonistas tornam-se a alma da história. E embora eu não ache que sejam eles os únicos e nem os maiores responsáveis pelo que ela consegue nos causar, ambos estão extremamente competentes nos papéis. Jake Gyllenhaal é perfeito nos olhares, nas expressões, nos pequenos gestos. Heath Leadger se apropria com segurança de um personagem bastante complexo. Corajosos, concentrados, dedicados, mostram que têm talento e só por aceitarem participar de um projeto com essa ousadia já merecem crédito. As atuações valorosas renderam indicações ao Oscar – e a vários outros prêmios – numa dessas pegadinhas que colocou Jake para concorrer como coadjuvante e Leadger como ator principal, embora ambos tenham a mesma importância na trama. A cena em que Jack acusa Ennis por nunca ter-lhe dado o que precisava é de arrasar (como tantas outras). Sem música ou qualquer ruído em cena que não a voz dos atores, nem mesmo o som ambiente, com movimentos de câmera que se restringem aos cortes de montagem e mudanças de enquadramento, tem uma força imensa. No fim da discussão há uma breve volta ao passado e revemos os dois em seu primeiro encontro na montanha, quando ainda ignoravam o futuro que viria – ou que não viria – desconhecendo o que a vida poderia fazer à seu amor. Naquele momento eles simplesmente viviam a paixão, alheios ao resto. Tinham o presente e um mundo aparte, apenas deles, naquele lugar. A cena termina com o olhar inocente e ainda não afetado de Jack, e o plano seguinte mostra o mesmo homem vinte anos depois, com um olhar que evidencia o desgaste daqueles anos. E rever aquele amor ingênuo, que se permitia despreocupado, já tendo agora consciência do destino que ele terá, dilacera o espectador. Compartilhamos aquilo com Jack, devastados como ele por algo tão intenso que não pôde ser plenamente vivido. Tudo o que aqueles dois homens têm depois de tanto tempo é Brokeback Mountain.
Aqui não há técnicas brilhantes que chamem a atenção. A direção de Ang Lee é competente, mas nada de genial. A fotografia, ajudada pelo cenário majestoso, é de uma beleza comum e o que faz de melhor é contribuir nos enquadramentos. A montagem traz uma idéia mais conceitual, dando a impressão de que a trama lança coisas novas à todo momento, que não têm tempo de se instaurar, o que acredito ser parte da idéia. A música arrebatadora, repetida durante todo o desenrolar da história sem soar cansativa, passa angústia e solidão. O roteiro magnífico é muito semelhante ao conto homônimo que o inspirou, mas desenvolve a premissa com mais delicadeza.
Brokeback Mountain emociona por explorar um amor verdadeiro, de uma maneira real. A paixão aqui afeta irremediavelmente não só os protagonistas, mas os outros ao seu redor. Não se pode mesmo ir contra uma força da natureza. O ser humano é apenas possuído e segue impotente. E assim, com seu jeito, o longa é triste, forte e maravilhoso. Quisera eu ser capaz de, como sugeriu um amigo, fazer o prazer que sentimos ao ver o filme se prolongar nesse texto.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Prévia

Muito bonito. Muito triste. Muito forte. Muito delicado. Muito peculiar.
Muito mais.
Prometo escrever sobre o filme no primeiro tempo livre que tiver. E aviso: vou gastar um montão de linhas!
Mas já digo de antemão que Brokeback Mountain é muito.