sábado, fevereiro 11, 2006

O Segredo de Brokeback Mountain

Insistir em levar às telas um roteiro perigoso que vinha sendo sumariamente recusado por produtores desde o fim da década de 90 não é lá uma idéia das mais sensatas. Apostar em dois atores jovens, bonitinhos e adorados por adolescentes frenéticas para interpretar cowboys americanos – um dos mais fortes arquétipos da virilidade masculina – que vivem um intenso caso de amor por vinte anos, seria então insanidade declarada. Mas foi assim que O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, Estados Unidos, 2005) levou milhares de espectadores aos cinemas para mostrar que coragem não faz mal à indústria e que o amor não precisa ser clichê para soar universal. Esse é um filme peculiar. Não por ser inusitado ao extremo, mas por trabalhar sua premissa com uma sensibilidade aguçada, respeitando os sentimentos que ela envolve sem se preocupar em rotulá-los. Um romance único, diferente dos que estamos acostumados a ver, com um poder de comoção absurdo, quase inexplicável. E de uma idéia que tratada de outra maneira poderia fazer barulho demais, gritando em nome de uma causa e remetendo à facilidade das apologias, somos agraciados com o silêncio e com a suavidade de murmúrios.
Brokeback Mountain não é um filme gay. Seria medíocre demais reduzir uma obra tão densa a isso. “Estamos apenas contando uma história de amor, sem adjetivos”, foi o que disse Heath Leadger, um dos protagonistas da trama. E não haveria definição melhor. O que vemos narrado aqui é essencialmente um amor impossível, pouco importa se gay, hétero ou simpatizante. Jack Twist (Jake Gyllenhaal) e Ennis Del Mar (Leadger) se conhecem no verão de 1963, quando tornam-se pastores de ovelhas na montanha Brokeback. No isolamento daquele lugar nasce uma paixão incontrolável. Com o fim do trabalho, Ennis e Jack se separam e seguem caminhos distantes. O primeiro, já de casamento marcado, constrói uma vida acomodada com a esposa Alma (Michelle Williams, que fez por merecer suas indicações à atriz coadjuvante), enquanto o segundo se casa com uma rica moça texana (Anne Hathaway). Quatro anos mais tarde eles voltam a se encontrar, retomando o relacionamento que nunca esqueceram.
Essa não é uma história de fácil absorção. O amor que testemunhamos exala uma intensidade que pode levar tempo para ser digerida. E o filme escancara o preconceito dentro da sala de cinema: nas duas sessões a que assisti, risadas nervosas que mostravam o incômodo causado pela falta de costume com o que estava sendo mostrado na tela - o que, no mundo de hoje, chega a ser um absurdo digno de dó - quebravam o silêncio das lindas cenas da projeção. Aos “espirituosos” de plantão, fica a dica: na próxima, abandonem o recinto a tempo e se refugiem na sessão de Vovó zona 2 ao lado. O filme não procura agredir ou chocar o público para abrir a polêmica que ronda sua premissa. Essa seria uma saída fácil. A relação entre Jack e Ennis é difícil de ser definida. É necessária, vital, delicada e agressiva ao mesmo tempo. É bonito ver aqueles homens tão másculos – sim, eles o são – nos momentos de carinho (e os enquadramentos são grandes responsáveis por isso, mérito não só do diretor Ang Lee, mas também da fotografia). E angustiante vê-los em momentos brutos impulsionados pelos sentimentos incontroláveis com os quais ainda não sabem lidar. Tão angustiante quanto é para eles. Love is a force of nature, diz o emblema do filme. É assim a paixão dos dois cowboys: não se pode evitar. E permanece intensa, incapaz de ser controlada, à margem de todo o resto da vida real. Prazer e sofrimento convivem em um amor difícil, cada vez mais insustentável, mas ainda essencial. A rotina é levada por carinho fraternal, conveniência ou por uma obrigação de tocar a vida da maneira esperada. Ennis, com a criação grosseira e rude que teve, é um homofóbico. Ao contrário de Jack, que quer a todo custo assumir o relacionamento, ele não aceita o que sente, impondo a si mesmo uma vida solitária de punição como preço a ser pago por não evitar aquilo.
O contraponto entre as personalidades dos dois é fundamental e os atores conseguiram desenvolve-lo muitíssimo bem. Num filme que se apóia tanto nos olhares – e, mais ainda, em quando eles são evitados - nos longos silêncios, naquilo que não é dito por palavras, mas pelas menores sutilezas da ação, os protagonistas tornam-se a alma da história. E embora eu não ache que sejam eles os únicos e nem os maiores responsáveis pelo que ela consegue nos causar, ambos estão extremamente competentes nos papéis. Jake Gyllenhaal é perfeito nos olhares, nas expressões, nos pequenos gestos. Heath Leadger se apropria com segurança de um personagem bastante complexo. Corajosos, concentrados, dedicados, mostram que têm talento e só por aceitarem participar de um projeto com essa ousadia já merecem crédito. As atuações valorosas renderam indicações ao Oscar – e a vários outros prêmios – numa dessas pegadinhas que colocou Jake para concorrer como coadjuvante e Leadger como ator principal, embora ambos tenham a mesma importância na trama. A cena em que Jack acusa Ennis por nunca ter-lhe dado o que precisava é de arrasar (como tantas outras). Sem música ou qualquer ruído em cena que não a voz dos atores, nem mesmo o som ambiente, com movimentos de câmera que se restringem aos cortes de montagem e mudanças de enquadramento, tem uma força imensa. No fim da discussão há uma breve volta ao passado e revemos os dois em seu primeiro encontro na montanha, quando ainda ignoravam o futuro que viria – ou que não viria – desconhecendo o que a vida poderia fazer à seu amor. Naquele momento eles simplesmente viviam a paixão, alheios ao resto. Tinham o presente e um mundo aparte, apenas deles, naquele lugar. A cena termina com o olhar inocente e ainda não afetado de Jack, e o plano seguinte mostra o mesmo homem vinte anos depois, com um olhar que evidencia o desgaste daqueles anos. E rever aquele amor ingênuo, que se permitia despreocupado, já tendo agora consciência do destino que ele terá, dilacera o espectador. Compartilhamos aquilo com Jack, devastados como ele por algo tão intenso que não pôde ser plenamente vivido. Tudo o que aqueles dois homens têm depois de tanto tempo é Brokeback Mountain.
Aqui não há técnicas brilhantes que chamem a atenção. A direção de Ang Lee é competente, mas nada de genial. A fotografia, ajudada pelo cenário majestoso, é de uma beleza comum e o que faz de melhor é contribuir nos enquadramentos. A montagem traz uma idéia mais conceitual, dando a impressão de que a trama lança coisas novas à todo momento, que não têm tempo de se instaurar, o que acredito ser parte da idéia. A música arrebatadora, repetida durante todo o desenrolar da história sem soar cansativa, passa angústia e solidão. O roteiro magnífico é muito semelhante ao conto homônimo que o inspirou, mas desenvolve a premissa com mais delicadeza.
Brokeback Mountain emociona por explorar um amor verdadeiro, de uma maneira real. A paixão aqui afeta irremediavelmente não só os protagonistas, mas os outros ao seu redor. Não se pode mesmo ir contra uma força da natureza. O ser humano é apenas possuído e segue impotente. E assim, com seu jeito, o longa é triste, forte e maravilhoso. Quisera eu ser capaz de, como sugeriu um amigo, fazer o prazer que sentimos ao ver o filme se prolongar nesse texto.

13 Comentários:

Às 1:57 AM , Blogger Isabella Goulart disse...

Digamos que eu sou uma moça que tem muito a dizer... Coluna de jornal? Será que posso ter um jornal inteiro?! =D

 
Às 4:17 PM , Anonymous Anônimo disse...

Isa, fala sério! Tipo, à parte nossas divergências quanto ao caráter de uma personagem, a crítica tah otima. Entretanto, deve ter sido a mais extensa que vc jah escreveu! Toma cuidado, daqui a pouco as pessoas vao acabar tendo preguiça de ler! bjinhos

 
Às 4:37 PM , Blogger Isabella Goulart disse...

É, eu sei, exagerei. Empolguei mais que o normal dessa vez...
=[

 
Às 10:01 AM , Anonymous Anônimo disse...

apesar de eu nao ter achado brokeback mountain um filme maravilhoso ou extraordinario, nao deixa de ser um bom filme, com todas as qualidades que vc imprimiu no texto. alias, ficou bemmm extensa essa critica! acho q dessa vez vc bateu o recorde! de qualquer forma reconhceo nessa critica o selo 'isa goulart' de qualidade, o qual nao vi na critca do ponto final!

 
Às 10:07 AM , Blogger Isabella Goulart disse...

Já dizia Aristóteles, a virtude está no meio-termo...

 
Às 12:03 PM , Anonymous Anônimo disse...

Vc mostra para seus professores seus textos? Poxa! Tão bárbaros! Queria eu ter esta capacidade de expressar minhas idéias no papel.Concordo com tudo q vc disse. É de dar dó ver a platéia debochando de algumas cenas do filme. E olha q quem desdenha quer comprar... Simplesmente são pessoas q põem em dúvida a própria sexualidade e, aposto c vc, dariam tudo pra ter um amor intenso, verdadeiro e misterioso como os protagonistas do filme. Que passem para a sala ao lado para ver Vovó Zona 2( adorei esta ).Me pergunto pq Brokeback Moutain, e não Brokeback Island ou Brokeback City? Talvez seja pq, nas montanhas, eles estejão acima das regras da medíocre sociedade, a mesma q assiste ao filme e não entende ( e nem procura entender )sobre os mistérios da paixão. Kênia falou q não é filme pra Oscar... Quase esganei-a! Bjs.

 
Às 1:13 PM , Anonymous Anônimo disse...

texto muitissimo interessante. engraçado a forma como o filme tocou algumas pessoas; trata-se de um filme simples, belo e complexo. excelente critica.

 
Às 11:36 PM , Anonymous Anônimo disse...

Ótima análise de um ótimo filme!

 
Às 10:06 AM , Blogger Isabella Goulart disse...

=D
Tô feliz! O blog tá bombando!!
Obrigada à todos pela visita, pela paciência e pelos comentários bacanas!

 
Às 2:09 AM , Anonymous Anônimo disse...

De nada. Mas cobre de si mesma um pouco mais de concisão. Percebi (mas você pode me corrigir se eu estiver errado) que seus textos são tanto maiores quanto mais você gostar do filme. Isso é óbvio por uma lógica fácil: quanto melhor o filme, mais ele tem a dizer e mais se pode dizer dele. Só pelo tamanho da crítica (um recorde pessoal de caracteres, imagino) pensei o quanto o filme deve ser bom, e pelo modo que escreveu vejo o quê e o quanto gostou. Darei uma chance ao filme essa semana.

Poesia com música? Médio. Mas poesia com foto não posso negar que ando me aventurando...

Costoli

 
Às 8:14 AM , Blogger Isabella Goulart disse...

E a discussão sobre o meu eu prolixo continua...
Hum... não sei se meus texos são maiores qdo gosto mais do filme. Acredito que acabam saindo mt gdes qdo acho que o filme tem mt a dizer. Adorei Match Point e o texto ficou bem pequeno. Mas dps da crítica "recorde de caracteres" de Brokeback eu comecei a me policiar mais no tamanho dos textos. Não dá pra falar de um filme em 10 linhas, mas acho que posso ser mais sintética sim. Johnny e June e Boa Noite e Boa Sorte não estão pequenas, mas já são mais concisas que Brokeback.

Enfim, dê uma chance ao filme sim. Vale a pena demais. =P

 
Às 2:39 PM , Blogger Isabella Goulart disse...

Retiro o que eu disse: Boa Noite e Boa Sorte ficou bem grandinho tb... Mas ah, sou prolixa por amor às palavras! =[
Convenceu?

 
Às 2:46 AM , Anonymous Anônimo disse...

Convenceu. Ah, convenceu...
=D
Costoli

 

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