segunda-feira, maio 18, 2009

Que Sera, Sera

James Stewart não é Cary Grant – e era isto o que mais incomodava Alfred Hitchcock no astro com quem trabalhou em quatro filmes (Grant foi protagonista de outros quatro). Hitchcock é famoso por desprezar o trabalho de atores, exceto o de Grant, o único a quem ele respeitava. Mas isso é outra história...
“O Home que Sabia Demais” (“The Man Who Knew Too Much”, EUA, 1956) é a penúltima parceria entre Stewart e o diretor inglês – a última foi “Um Corpo Que Cai” (“Vertigo”, EUA, 1958), tendo Hitchcock culpado seu ator não-favorito pelo fracasso do filme à época. Quer aqueles dois homens se gostassem ou não, assistir a qualquer um desses filmes é um prazer enorme para quem compreende a beleza da decupagem na construção da narrativa.
Decupar é dividir a ação em planos (quadros fixos na tela) e eu acredito, cada vez mais, que está aí a arte de um grande diretor. Hitchcock, provavelmente, pensava da mesma maneira. Não se tem notícia de um profissional tão metódico em relação ao processo de decupar filmes: ele tinha o hábito de recorrer aos storyboards e possuía uma imagem mental de todas as cenas. Para ele, o trabalho de criação acabava na divisão do roteiro em planos, não havendo espaço para a improvisação no set de filmagem. Por isso, via os atores como peças equivalentes às demais do cenário, que ocupavam uma posição pré-estabelecida dentro do quadro.
O filme de 1956 é mais um exemplo das virtudes que eternizaram Hitchcock: um suspense refinado, saído de uma mente hábil em despertar as sensações do público. Sim, tudo isso graças a uma decupagem que merece ser admirada como uma obra, dessas de um museu de arte clássica, e de outros elementos acessórios. Fazer uma análise minimamente adequada do filme tomaria um tempo que eu não tenho, e um excesso de caracteres que vocês não teriam paciência de ler num blog. Portanto, cito apenas três momentos que exemplificam o que quero dizer.
No primeiro deles, James Stewart caminha numa rua vazia. Para aguçar no espectador a mesma sensação do personagem – a dúvida de estar ou não sendo seguido – Hitchcock utiliza o espaço fora de tela, mantendo a câmera fechada em Stewart, enquanto ouvimos o som de passos no fundo. Num segundo momento, na sala do taxonomista, uma conversa entre Stewart e o personagem Ambrose Chappell é filmada em plano e contra-plano. A câmera é colocada num ângulo baixo em relação a Stewart (se não me engano), que divide o quadro com a cabeça de um animal feroz (não me lembro exatamente qual é). Isto remete à sua postura de ataque naquela cena, quando tenta reaver o filho raptado. Num terceiro momento, na Capela Ambrose, ele e a esposa (Doris Day) escondem-se dos raptores da criança. Eles se colocam fora do campo de visão do espectador, que não é o mesmo dos personagens de quem eles não querem estar à vista. Uma brincadeira de Hithcock com a nossa percepção.
Dos “elementos acessórios”, a imponente trilha de Bernard Herrmann é o mais importante. Durante uma sequência de 12 minutos não escutamos nenhuma palavra, apenas o som da orquestra no teatro (regida na tela pelo próprio Herrmann). É uma cena tensa, de um enorme poder dramático e de uma elegância indescritível. Hitchcock nos faz entender que o diálogo não ouvido entre os personagens é irrelevante ali, frente às ações decupadas e coordenadas pela montagem, conduzidas pela música.
O senso de humor do diretor é óbvio e quase sádico, sendo Stewart sua vítima preferencial: desde uma mesa baixa demais, onde não cabem suas pernas longas, até a sequencia na casa do taxonomista, com leões e tigres empalhados por todo o cenário, ridicularizando a súbita ferocidade do protagonista. É também nítido o fascínio do diretor pelas mulheres (loiras): a personagem de Doris Day é mais astuta e instintiva do que seu marido, e, sendo uma famosa ex-cantora, é a responsável pelo casal estar frequentemente em evidência. A música, novamente, e a mulher têm uma função dramática decisiva, quando Day canta “Que Sera, Sera” ao piano. Por tudo isto, assistir a um suspense de Hitchcock me faz pensar, afinal, que a controversa “teoria de autor” não é um total engano.

Brando, um homem moderno

A mostra “Brando – O Ator no Cinema”, que aconteceu em março na Caixa Cultural (RJ), me inspirou algumas reflexões. Poucos dias antes da mostra, Marlon Brando já havia cruzado o meu caminho. Zapeando os canais na TV por assinatura, encontrei, nem me lembro em qual deles, o documentário “Brando” (Mimi Freedman/Leslie Greif, Estados Unidos, 2007), quase pela metade. No mesmo dia, pude assistir, no TCM, a “Caçada Humana” (Arthur Penn, Estados Unidos, 1966) - que, infelizmente, não pôde constar no catálogo da mostra.
“O Último Tango em Paris” (1972) é, sem dúvida, um filme inesquecível. Mas é uma co-produção França/Itália dirigida por Bernardo Bertolucci, que representa um outro cinema, mais livre, além das fronteiras de Hollywood, que estava descobrindo suas regras – ou a falta delas – havia pouco tempo. Um cinema mais aberto à experimentação, a repensar a narrativa, a relação do ator com o texto e com o próprio personagem. Tratarei aqui de dois outros filmes de Brando: “Caçada Humana” e “O Pecado de Todos Nós” (John Huston, Estados Unidos, 1967), obras contemporâneas, inseridas numa já consolidada indústria de cinema americana.
Eram os anos 1960. Aos grandes estúdios de Hollywood já não era permitida a integração vertical (a possibilidade de atuar na produção, distribuição e exibição dos filmes); a TV realizava produções próprias e o público tinha entretenimento sem precisar sair de casa; o cinema se revolucionava, saía dos estúdios para as locações, rompia com a narrativa clássica que dominou a primeira década do século XX, sacudido pelos incômodos e culpas de um novo mundo, pós-Segunda Guerra.
Era imperativo que Hollywood acompanhasse as mudanças e se reestruturasse também. Não foi imediatamente, nunca houve uma quebra ampla, geral e irrestrita de padrões, mas, sim, os grandes estúdios da costa oeste, que nunca foram ingênuos, começaram a dançar conforme a música, combinando seu material de consumo ao perfil de uma nova geração. “Caçada Humana” foi um dos primeiros trabalhos de Arthur Penn no cinema, assim como de Robert Duvall e de seu xará Redford (grande sex symbol da década seguinte). No elenco, Angie Dickinson e Jane Fonda, musas de uma nova era. A história foca as frustrações, preconceitos e a ignorância da sociedade de uma típica cidadezinha americana, numa narrativa mais aberta, onde a trama não é o que mais importa.
Em “O Pecado de Todos Nós”, duas figuras icônicas da Hollywood clássica, John Huston e Elizabeth Taylor, e uma narrativa igualmente mais aberta. Com uma fotografia em sépia, onde as tonalidades do technicolor não poderiam desviar a atenção do espectador, Huston constrói relações difíceis, corajosas e sutis. Mais do que as ações, interessa aqui o comportamento dos personagens e é a atuação, mais do que o texto, que nos leva a conhecê-los.
No centro de ambos os filmes está Brando, possivelmente o maior ícone da modernidade de Hollywood. A definição do “ator”, a imagem de uma masculinidade ao mesmo tempo bruta e vulnerável, um homem com a capacidade de se transformar em qualquer homem. Brando personificou a figura do astro moderno que Hollywood precisava e reinventou o papel do ator no cinema, dando-lhe o peso criativo que tinham o diretor e o produtor. Sem a interpretação instintiva e humanizada de Brando, “Caçada Humana” e “O Pecado de Todos Nós” não teriam o ar moderno que aparentam, ainda que com os avanços narrativos.

sexta-feira, novembro 30, 2007

Sangue, suor e lágrimas da sua avó...


Em 1953 a Segunda Guerra era um passado recente. Se alguma ingenuidade restou da Primeira Guerra, ela se perdeu entre 1939 e 1945, quando o avanço técnico beneficiou o genocídio. As bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki lançaram a ameaça do conflito nuclear. Uma nova ordem se estruturava em cima de paranóia e insegurança. Com os equipamentos portáteis usados na guerra, os artistas foram para fora dos estúdios. Nascia o cinema moderno, perturbado por ter chegado tarde aos campos de batalha e de concentração. E, se ele falhou em registrar o caos enquanto acontecia, restava-lhe agora a obrigação de mostrar o que passou.

Rossellini, de Sicca e Viscontti elevaram o cinema a um novo paradigma e diz-se que Hollywood jamais se recuperou do baque. Ainda assim, na costa oeste dos Estados Unidos, os negócios seguiam como de costume. Lá não havia espaço para o neo-realismo ou para o cinema pessoal e não-genérico que crescia na Europa – Godard, Resnais, Truffaut – e fora dela – o nosso Cinema Novo. Nem a popularização da TV, nem o fim do monopólio de produção, distribuição e exibição pelos grandes estúdios fez o antigo cinema de gêneros jogar a toalha. Insistindo contra a conjuntura mais desfavorável já enfrentada, Hollywood se valia do ar blasé de Clark Gable em “...E o Vento Levou” e da célebre frase de seu personagem: “sinceramente, minha cara, eu não dou a mínima”.

Se você perguntar à sua avó sobre “A Um Passo da Eternidade” ("From Here to Eternity, EUA, 1953) ela contará como chorou por duas horas com o infindável sofrimento na tela. Talvez você não conheça o filme, mas deve ter na memória a cena em que Burt Lancaster e Deborah Kerr são cobertos pelas ondas enquanto se beijam na praia – uma das seqüências românticas mais famosas da história. Não é preciso Oscar para ser um clássico, mas oito estatuetas – como filme, diretor (Fred Zinnemann), atriz e ator coadjuvantes (Donna Reed e Frank Sinatra) – ajudam um filme a se tornar um. O campeão de 53 é uma amostra do delicioso fascínio do cinema clássico-narrativo americano, em sua melhor era. O tipo de programa que dava à sua avó a chance de escapar da vida real e estar com astros que eram deuses para gente comum.

A fórmula combinava efeitos visuais, atores-fetiche em romances impossíveis e uma grande ferida da história americana. Esse belo melodrama de guerra, baseado no romance de James Jones, acontece numa base americana no Havaí às vésperas do ataque a Pearl Harbor. Lancaster era a primeira escolha da equipe para viver o Sgt. Warden, mas os demais atores eram a segunda opção do estúdio. Kerr, por exemplo, interpretou Karen, esposa do capitão da base e amante do sargento, porque os figurinos (oscarizados) desagradaram a temperamental Joan Crawford - e foi um choque ver Deborah no papel de uma esposa infiel. Montgomery Clift e Donna Reed arrancaram lágrimas como um soldado solitário e uma prostituta que se apaixonam. O filme alavancou a carreira cinematográfica de Frank Sinatra que, em alguns anos, ganharia fama de ator instintivo, melhor em papéis que combinavam com sua personalidade. Sua espontaneidade valeu um Oscar quando Hollywood ainda não o aceitava bem. E mesmo sendo o foco cômico do filme, nem ele foge à tragédia.

Sofrer embalado pela música, eia a máxima de um melodrama
. O destino é o grande vilão. Os personagens são passivos e impotentes diante dele, incapazes de ações concretas que conduzam à felicidade, sempre breve e fugaz, pois o passar do tempo é irremediável. Aqui não é diferente. Cada um traz feridas da vida e todos agem como vítimas resignadas, condenadas a um futuro sem esperança. As subtramas culminam com o ataque japonês, que lhes põe fim e é a representação máxima do destino impiedoso, maior do que os homens, do qual não se pode fugir. O ser humano está bloqeuado, não tem saída. A nostalgia é a metáfora de uma vida perecível.

Aristóteles já sabia que a tragédia tem forte apelo popular e nada mais fascinante que o escapismo masoquista de pagarmos um ingresso para que nos façam sofrer. Nos anos 50 o mundo ia por um novo caminho, mas os estúdios em Hollywood ainda mantinham aquele poder hipnótico de dar inveja à psicanálise
.

terça-feira, junho 05, 2007

Premonições

Entrar no cinema sem expectativa pode ser uma boa. Enquanto os últimos capítulos de Homem Aranha e Piratas do Caribe tumultuam metade das salas, Premonições estréia como aquele filme que faz pouco barulho na sala ao lado, e talvez por isso agrade. O título é ruim. Por conta dele, o filme corre o risco de ser encarado pelo público apenas como “outro com nome parecido”, já que o mercado está saturado deles: Premonição, A Premonição, O Dom da Premonição. Mas os três dias de abertura do longa em março nos EUA deixaram a Sony (uma das distribuidoras) contente. Ele ocupou o terceiro lugar nas bilheterias e presenteou Sandra Bullock com o fim de semana de estréia mais rentável de sua carreira.

Aqui, ele deu o azar de entrar em cartaz no furor de Peter Parker e Jack Sparrow. No filme, Bullock é Linda Hanson, dona-de-casa que fica viúva quando o marido (Julian McMahon) sofre um acidente. Na manhã seguinte ele está vivo e episódios incongruentes passam a se entremear, sem sabermos se são reais ou alucinações. Mesmo com perniciosas falhas de continuidade e alguns pequenos furos no roteiro, não nos perdemos na história. Mas, como o título, a idéia não é nada inovadora e traz os clichês costumeiros: a fé como resposta; a família como o bem maior; a sanidade da personagem que é questionada.

Situar o espectador no ponto de vista de Linda é boa idéia – embora a overdose de Sandra Bullock na tela seja tamanha que os coadjuvantes parecem existir apenas pra que ela não fale sozinha. Enxergamos tudo de acordo com sua percepção das coisas. Afinal, nada indica que suas alucinações não correspondem à realidade. A direção de arte é correta e junto com a fotografia simula um ambiente palpável como o do nosso mundo real. Mas a sensibilidade do diretor Mennan Yapo é o que faz a diferença. Optando, por exemplo, pelos planos fechados na primeira metade do filme, ele soube o que mostrar nas imagens enquanto construía a tensão. É graças à sua astúcia que entramos no jogo de uma história parecida com tantas outras e somos levados.

Premonições é o tipo de cria da indústria que não está preocupado em te oferecer nada além do puro entretenimento. Uma idéia americana com lugares comuns, ancorada por uma estrela que já não brilha tanto em Hollywood. Mais um filme comercial de porte médio entre um ou outro blockbuster megalomaníaco. Tais estereótipos são inegáveis, mas dentro deles esse suspense se sai melhor do que um genérico com “premonições”. É um filme bem feito.

terça-feira, março 20, 2007

Scoop - O Grande Furo


O melhor comentário que ouvi sobre Scoop – O Grande Furo (Scoop, EUA/Inglaterra, 2006) foi “ele não acrescenta em nada a carreira de Woody Allen”. O diretor nova-iorquino tem um hábito distinto da maioria de seus colegas do cinema contemporâneo: ele é um cineasta que bate cartão. Ano a ano, sem falhar, Allen lança pelo menos um longa de sua autoria no mercado.

Quantidade não garante qualidade. O velho chavão se encaixa bem ao Allen dos últimos anos, capaz de variar do agradável em Melinda e Melinda (2005) ao admirável em Match Point (2005) e ao mero aceitável em Scoop. A roupagem dos três filmes não é muito diferente do que aprendemos a esperar do cineasta com o passar do tempo. Suas neuroses particulares, o quê de egocentrismo, as tiradas auto-depreciativas, o humor cínico e cortante das falas marcaram toda a filmografia do diretor e são também o tempero de Scoop. Goste-se ou não do que ele faz, é preciso reconhecer sua astúcia. Reinventar um mesmo esquema com um mínimo de competência tantas e tantas vezes é capacidade de poucos, e talvez seja esse o seu maior talento.

Allen continua fora de seu cenário favorito, Nova York, embora o texto ainda faça menção à sua cidade natal e, como não poderia deixar de ser, à origem judia. Já à vontade depois de Match Point, em Scoop ele permanece em Londres na boa companhia de Scarlett Johansson e dá as caras em mais uma comédia. Se não faltam energia e personalidade ao filme de 2005, o novo longa se contenta com pouco. Sequer se aproxima da potência dramática de Match Point, o que não chega a ser um problema se assumirmos que o filme não está interessado nisso. Scoop é, por natureza, bem menos pretensioso.

Sondra Pransky (Johansson) é uma estudante de jornalismo americana de visita a Londres. Quando participa de um truque de desmaterialização durante o show do mágico Sidney Waterman (Allen), surge em sua frente o espírito de um importante repórter investigativo morto recentemente (Ian McShane), que lhe dá um grande furo jornalístico: o aristocrata Peter Lyman (Hugh Jackman) seria um perigoso serial killer. Para investigar pistas que confirmem a história, Sondra se envolve com Peter e acaba se apaixonando por ele.

A trama é banal em todo o seu desenrolar. Fica a sensação de já termos assistido aquilo antes, em algum lugar. Isso porque, apesar de saturado do humor, dos vícios e das neuroses de Allen – e, que fique claro, se tratando dele esses não são termos pejorativos – já vimos, sim, essa mesma história em inúmeros outros filmes. A farsa pontilhada por nuances teatrais é simples, em técnica e enredo, mas de um bom gosto que se confirma, por exemplo, na trilha sonora refinada com músicas de Strauss. Londres, charmosa por si só, é um ótimo cenário para o texto ágil e afiado que Allen compartilha com sua musa e compatriota Johansson, inspiradíssima, sem jamais perder o controle do timing cômico. E se Hugh Jackman não oferece muito em seu desempenho, a dupla de americanos vale o ingresso.

Saindo da sala de cinema, a conclusão é que o filme não fede nem cheira. Woody Allen ainda é saboroso, embora às vezes seja sem sal. O tempero de Allen é bom, mas Scoop ficou sem gosto.

terça-feira, fevereiro 27, 2007

Ele, o Oscar


Este foi um ano acanhado, mas relevante nas indicações e na premiação da Academia. O Oscar verde de Al Gore e Leonardo DiCaprio. O Oscar da diversidade para a qual a apresentadora Ellen DeGeneres chamou a atenção. Uma festa insossa na 79ª edição dos prêmios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles.
A aparente injustiça de nunca terem premiado Martin Scorcese mostrava sinais de que seria corrigida. Babel, o vencedor do Globo de Ouro por melhor filme de drama, apontado como favorito, levou baldes de água-fria nas premiações anteriores ao Oscar, sugerindo que em 2007 o favoritismo seria menos certo do que as surpresas. Os sindicatos, bons termômetros para a premiação da Academia, preteriram o Babel de Alejandro Gonzáles Inãrritu, dando crédito a Os Infiltrados de Martin Scorcese e confirmando o adorado – e adorável – Pequena Miss Sunshine como o queridinho de 2006. Com seu porte tímido, o filme da dupla Jonathan Dayton e Valerie Ferris – o único dos concorrentes de melhor filme a não ter os diretores indicados – levou o prêmio do sindicato de atores por melhor elenco, o do sindicato de roteiristas por melhor roteiro original e o do sindicato dos produtores, garantindo ser um competidor forte na briga pela mais importante das estatuetas douradas. O filme de Scorcese acumulou os prêmios do sindicato de diretores, do de roteiristas – melhor roteiro adaptado – e dividiu com Babel o prêmio do sindicato de montadores, chamando a atenção para mais uma possível surpresa no Oscar.
Ao todo, foram 14 indicações para filmes de veia latino-americana, muitas delas em categorias técnicas importantes: 5 para o mexicano O Labirinto do Fauno, de Guillermo Del Toro, 2 para Filhos da Esperança, dirigido pelo também mexicano Alfonso Cuarón e 7 para Babel, dirigido pelo não menos mexicano Iñarritu. Pedro Almodóvar viu Penélope Cruz, a estrela do espanhol Volver, ser indicada a melhor atriz, algo raro de acontecer a um filme falado em língua não-inglesa. A Rainha, tão polido e britânico quanto Sua Majestade, foi indicado a 5 prêmios. E o “sabe-se-lá-por-quê” queridinho da América Dreamgirls, o mais nomeado, com 8 indicações, arrematou apenas 2 estatuetas.
Acho que o Oscar 2007 ficará na memória por uma estimativa agradável: em que outro ano filmes além dos domínios norte-americanos ocuparam tanto espaço na premiação? No fim de tudo, o que mais me impressionou foi ter me surpreendido menos do que a maioria. Numa premiação imprevisível, possivelmente uma das mais competitivas em anos, os sindicatos indicaram o caminho dos garotos dourados, rebaixando a euforia de favoritismos a especulações vazias.

Como de praxe, as estatuetas mais esperadas da noite foram as últimas: melhor ator, atriz, diretor e filme, em sequência. O incomum foi apresentarem tantas categorias técnicas antes e entre os prêmios para as performances dos coadjuvantes. O primeiro prêmio foi para a melhor direção de arte, categoria em que O Labirinto do Fauno concorria com Dreamgirls, O Bom Pastor, Piratas do Caribe – O Baú da Morte e O Grande Truque. O Fauno havia levado o prêmio do sindicato pelos cenários que materializam a fantasia. Era possível que também abocanhasse o prêmio da Academia, ainda que se acreditasse no favoritismo de Dreamgirls. John Myhre – já oscarizado por Chicago e Memórias de uma Gueixa – e Nancy Haigh respondem por um ótimo trabalho no musical de Bill Condon, mas os méritos da direção de arte de Dreamgirls não chegam a merecer o Oscar. Minha aposta foi para Eugenio Caballero e Pillar Revuelta, que deram ao filme de Guillermo del Toro seu primeiro garoto dourado.
Competindo com o Apocalypto de Mel Gibson e com Click, O Labirinto do Fauno era também minha aposta para o prêmio de melhor maquiagem. Embora eu não tenha visto nenhum dos três concorrentes, me pareceu que no filme mexicano a maquiagem era um elemento essencial da direção de arte. Um Oscar poderia levar ao outro e o Fauno recebeu sua segunda consagração, para David Martí e Montse Ribé.
Dreamgirls se destacava novamente como favorito para melhor figurino. O trabalho de Sharen Davis é competente e dá um ar contemporâneo à década de 60. Mas, assim como a direção de arte, merece elogios, não a estatueta. O sindicato surpreendeu, preferindo A Maldição da Flor Dourada e A Rainha. Ainda assim, minha aposta era na veterana Milena Canonero, já premiada duas vezes pela Academia, que concorria por Maria Antonieta e levou o Oscar por um trabalho que exigiu ousadia e pompa – bem do jeito que a Academia gosta.



Duas das maiores surpresas, para mim, foram o Labirinto do Fauno ter levado melhor fotografia (Guillermo Navarro) – que, eu acreditava, iria para o trabalho excelente (e reconhecido pelo sindicato) de Emanuel Lubezki em Filhos da Esperança, um filme tecnicamente complicado e repleto de planos sequência – mas, mesmo depois de aclamado por três prêmios técnicos, perder para o alemão A Vida dos Outros o Oscar de melhor filme em língua estrangeira. Happy Feet também surpreendeu, levando o prêmio de melhor longa de animação que parecia ser de Carros. Os pinguins dançarinos de George Miller são mesmo superiores aos automóveis de John Lasseter.




O prêmio de efeitos visuais para John Knoll, Hal T. Hickel, Charles Gibson e Allen Hall por Piratas do Caribe – O Baú da Morte, contra Poseidon e Superman Returns, não surpreendeu. Melhor roteiro adaptado e melhor roteiro original também seguiram o previsto sem decepcionar. William Monahan, que elaborou a história precisa e ágil de Os Infiltrados a partir do roteiro de um filme chinês, venceu o primeiro. E Michael Arndt levou o segundo por sua crítica bem-humorada à família de classe-média norte-americana em Pequena Miss Sunshine, um roteiro delicado e agradável, recusado pelos grandes estúdios, que conquistou como filme independente.
No Oscar verde, anti-poluição ambiental, anti-desperdício e, aparentemente, anti-republicano, Al Gore foi celebridade. Aplaudido com entusiasmo por Leonardo DiCaprio e pela platéia ao pisar no palco do Kodak Theatre, sorridente e confortável o suficiente para ouvir e fazer piadinhas, o ex-quase presidente foi estrela na 79ª edição do Oscar. Era certo que ele levaria para casa a estatueta pelo documentário de longa-metragem Uma Verdade Inconveniente. E, com tanta hospitalidade, também não era difícil imaginar que a canção do filme, “I Need to Wake Up”, de Melissa Etheridge, com sua mensagem moral passasse por cima das três concorrentes de Dreamgirls (esgoeladas por Jennifer Hudson, Beyoncé Knowless e Anika Noni Rose) e de “Our Town”, composição de Randy Newman para Carros. Oscar de melhor canção para um filme documentário? Enfim, era o documentário do Al Gore.
Eu apostava no filme de Iñarritu para melhor trilha sonora e edição. A trilha, dilacerante, arrematou o prêmio e Gustavo Santaolalla, que já havia vencido o ano passado por O Segredo de Brokeback Mountain, derrotou Thomas Newman (The Good German), Philip Glass (Notas sobre um Escândalo), Javier Navarrete (O Labirinto do Fauno), Alexandre Desplat (A Rainha) e ganhou seu segundo Oscar. Mas Babel perdeu a estatueta de melhor edição para Os Infiltrados – minha primeira opção nas apostas, que acabei rebaixando a segunda – e Thelma Schoonmaker, parceira habitual de Martin Scorcese, ganhou o Oscar por um trabalho valoroso.






Cartas de Iwo Jima, mais um drama dirigido pelo durão Clint Eastwood, foi minha primeira aposta para melhor edição de som. Achei um filme absolutamente maravilhoso. Iwo Jima era minha paixão no Oscar desse ano e porque minhas apostas costumam ser influenciadas pela emoção, troquei meu voto para A Conquista da Honra, o similar oposto de Iwo Jima, também dirigido por Eastwood e rodado simultaneamente ao outro. Cartas... é um filme superior, mais seguro e bem construído, mas as semelhanças técnicas entre os dois são enormes. Na última hora mudei de novo o voto, dessa vez para Piratas do Caribe – O Baú da Morte, pelo ótimo trabalho de som realizado por Christopher Boyes e George Watters. E o Oscar acabou sendo dado a Alan Robert Murray – que concorria pelos dois filmes de Eastwood – por Cartas de Iwo Jima. Para mixagem de som, as apostas eram no favorito Dreamgirls. O filme em si é fraco, mas a mixagem de Michael Minkler, Bob Beemer e Willie Burton merece o prêmio que levou.

Falando em prêmios merecidos, vamos ao Oscar menos justificável da noite: o de melhor atriz coadjuvante para Jennifer Hudson. Sim, era uma barbada, ainda que alguns acreditassem que a pequena miss sunshine Abigail Breslin pudesse ganhar. Apesar do favoritismo, eu não acreditava que o musical fosse levar os dois Oscars de coadjuvante, mas estava em dúvida de quem ficaria na berlinda, a “injustiçada” do American Idol Jennifer Hudson ou Eddie Murphy. Dreamgirls é sofrível, roteiro e direção são medíocres e, embora as atuações não sejam ruins, elas também não são memoráveis. Jennifer Hudson é boa o suficiente para o papel, mas seu desempenho não valia um Oscar. Particularmente, eu preferia Adriana Barraza ou mesmo Rinko Kikuchi, ótimas em Babel. Eddie Murphy desenvolveu um trabalho realmente bom como Jimmy Early e seu personagem no filme cresceu porque ele é, de longe, a melhor coisa de Dreamgirls, um alívio para o filme. Dizem que a Academia não simpatiza muito com Murphy e ele não era, na minha opinião, mais merecedor do prêmio de coadjuvante masculino do que os outros concorrentes, todos donos de excelentes atuações. Venceu o veterano Alan Arkin, de Pequena Miss Sunshine.




Melhor atriz, melhor ator e melhor diretor eram barbadas das mais certas. A Rainha se ergue sobre o comedimento de Hellen Mirren e ela venceu Penélope Cruz (Volver), Judi Dench (Notas sobre um Escândalo), Meryl Streep (O Diabo Veste Prada) e Kate Winslet (Pecados Íntimos) pelo desempenho magistral no filme de Stephen Frears. Forest Whitaker, bom ator relegado a papéis de coadjuvante, não tinha grande visibilidade no cinema até personificar o medonho ex-ditador de Uganda Idi Amim em O Último Rei da Escócia. Saiu vitorioso, deixando para trás Leonardo DiCaprio (Diamante de Sangue), Will Smith (A Procura da Felicidade), o novato Ryan Gosling (Half Nelson) e o veteraníssimo - e dono de um Oscar honorário - Peter O´Toole, que nunca levou a estatueta de melhor ator, apesar de essa ter sido sua oitava indicação.




Martin Scorcese receberia a estatueta de melhor diretor pela qual esperava há tanto tempo, e que esse ano lhe era de direito. Ninguém apostava no contrário. Os Infiltrados se destacou nas premiações pré-Oscar, indicando que essa era a vez de Scorcese, um diretor incrível jamais premiado com a estatueta dourada, atropelado por Roman Polansky (O Pianista) em 2003 e por Clint Eastwood (Menina de Ouro) em 2005, só para lembrar o passado recente. E foi o momento mais emocionante da noite quando o trio Steven Spielberg, George Lucas e Francis Ford Coppola entregou o Oscar ao amigo. No palco, três enormes personalidades do cinema contemporâneo, homenageando uma quarta figura tão gigante quanto eles. Uma cena fundamental para história do Oscar, do Cinema e para qualquer um que se interesse por ambos.



O prêmio de melhor diretor de Martin Scorcese foi merecidíssimo. Os Infiltrados é um filme impecável. Ainda assim, eu apostava que ele levaria o Oscar de melhor filme menos por merecimento e mais pela velha iniciativa da Academia de corrigir injustiças. Não que tenha sido um Oscar injusto, não acho que seja o caso. Os Infiltrados não é uma das obras-primas do diretor, mas Scorcese realizou um filme irrepreensível, como eu já enfatizei. Nem por isso o melhor entre os 5 indicados. Minha paixão era Cartas de Iwo Jima, como também já deixei claro, e isso é uma opinião pessoal. Fiquei tentada a apostar minhas fichas nele, mas pensando racionalmente não acreditei que a Academia fosse novamente preterir Scorcese e oscarizar um filme de Clint Eastwood, que já venceu o amigo há dois anos atrás.
Babel ainda era apontado por muitos críticos como o favorito, e eu não via porquê, já que o filme de Iñarritu – o segundo melhor entre os concorrentes, na minha opinião – não mostrou bons resultados nas demais premiações, dando a entender que seria uma decepção no Oscar. A Rainha, britânico como é, nunca me pareceu ter chance de levar o prêmio principal. Por isso eu acreditava que a briga seria mesmo entre Pequena Miss Sunshine e Os Infiltrados. Sunshine acabou vencendo melhor ator coadjuvante, o que significou para mim que ele poderia, então, não levar o primeiro prêmio. O Oscar de melhor filme seria provavelmente de Os Infiltrados, que já havia ganho melhor diretor, roteiro adaptado e edição. E assim foi.




Os 5 indicados ao prêmio principal foram realmente os melhores de 2006 - e essa é mais uma opinião pessoal. Dizer isso pode parecer redundante, mas nem sempre concordo com as indicações. Em quase todos os anos há um ou outro filme que me desagrada. Dessa vez não foi o caso e fiquei feliz por isso. Em 2008, a Academia completará 80 anos e acho que podemos esperar uma grande festa. Com ótimos filmes, torço eu.

segunda-feira, janeiro 08, 2007

Diamante de Sangue



Martin Scorsese fez bem a Leonardo DiCaprio. Se a arte cinematográfica não ganhou muito com suas primeiras parcerias – Gangues de Nova York, de 2002, e O Aviador, de 2004 – o ator parece ter tirado grande proveito delas. Com duas indicações a melhor ator em drama no Globo de Ouro 2007 – por Os Infiltrados, a terceira cria da sociedade com Scorsese, e Diamante de Sangue – DiCaprio pode não ser o melhor ator do ano, mas exibe sinais de amadurecimento que não deixam dúvida. O garoto de rostinho bonito por quem as adolescentes suspiraram em Romeo+Julieta, que alcançou o estrelato ao protagonizar Titanic em 1997, tem agora 32 anos e uma capacidade dramática consideravelmente mais versátil.
Em Diamante de Sangue (Blood Diamond, Estados Unidos, 2006), DiCaprio é Danny Archer, ‘garoto branco nascido na África’ como o próprio personagem se define, traficante de armas para a Frente Revolucionária Unida (FRU). A trama se passa em Serra Leoa no ano de 1999, quando a guerra civil atingia seu auge. A FRU invade aldeias e cidades matando, mutilando, transformando meninos em guerrilheiros e o exército sequer disfarça as arbitrariedades que comete na briga pelos diamantes extraídos ilegalmente, que tem como conseqüências diretas a ultraviolência, a miséria e o exílio forçado de um sem número de civis. Os diamantes de sangue, como ficam conhecidos, são interceptados às escuras em Londres e se espalham pelas vitrines de joalherias de todo o mundo para, junto a pedras garimpadas legitimamente, tornarem-se 'the girls best friends', nas palavras da Marilyn Monroe de Os Homens Preferem as Loiras.
Também envolvido no tráfico de diamantes, Danny é detido na tentativa de contrabandear pedras para a Libéria e na prisão conhece Solomon Vandy (Djimon Hounson), pescador de etnia Mendy separado da família durante um ataque da FRU à sua aldeia. No garimpo de trabalhos forçados para onde é levado pelos guerrilheiros, Solo encontra um diamante cor-de-rosa que passa a ser alvo da cobiça de Danny. Assim como usa Solo para conseguir o que quer, Danny é usado por Maddy Bowen (Jennifer Connelly), jornalista norte-americana interessada em escrever sobre as pedras ilegais, em busca de fatos passíveis de serem provados. O diamante encontrado por Solo representa para o trio principal a chance única de que cada um alcance aquilo que objetiva. Como já explicam alguns dos posteres, para o pescador afastado da mulher e dos filhos a pedra significa a liberdade; para o ex-mercenário, a fortuna; e para a repórter obcecada pela causa social, a verdade.
Diamante de Sangue é aquele tipo de filme em que a realidade brinca de ser ficção. As comparações com O Jardineiro Fiel (2005) e Hotel Ruanda (2004) têm sido recorrentes, já que os três gritam em alto e bom som por uma causa comum: a violência e o subdesenvolvimento na África, seus motivos e conseqüências. Longe de ser um romance acima da indisfarçável desordem do continente como o belo filme de Fernando Meirelles, ou a ficção ultrarealista que é o Hotel Ruanda de Terry George, o longa dirigido por Edward Zwick é um thriller de ação (muita ação), com um pano de fundo verdadeiro demais para ser esquecido.
Danny Archer, Solomon Vandy e Maddy Bowen são personagens da ficção – o altruísmo de Maddy raramente sobreviveria no mundo real, a moral da história e a redenção do personagem corrompido não negam as opções clássicas de um roteiro cinematográfico. O romance e o desenvolvimento da ação no enredo remetem a um roteiro ficcional, mas a ligação dos personagens com o ambiente que os cerca – e, no caso de Danny e Solomon, os condiciona – mantém a lógica e faz o espectador cair em si o tempo todo. O que assistimos já foi real em Serra Leoa e ainda é em muitos países da África.
O trabalho consciente, preciso e seguro de Edward Zwick pouco faz lembrar a direção de O Último Samurai. Em Diamante de Sangue, a câmera é caótica – não poderia deixar de ser, já que passeia pelo caos – e não se atém a uma única imagem da guerra por mais do que poucos segundos. O panorama assustador se constrói na tela por uma sucessão de quadros que chocam – mulheres e crianças aos berros, corpos expostos pelo chão, crianças empunhando armas, em meio à pobreza e ao abandono extremo – e pela hábil exploração do espaço fora de tela. A beleza natural do continente, a despeito de todas as suas mazelas, é freqüentemente ressaltada pela fotografia dos filmes que têm como cenário o espaço africano e aqui não é diferente.
A guerra em Serra Leoa terminou em 2002. Antes disso, uma mostra de boas intenções em prol do fim dos conflitos na África já começava a aparecer: o Processo Kimberley é um acordo entre diversos países e determina que o percurso de cada pedra de diamante seja fiscalizado a partir do garimpo. Diamante de Sangue talvez tenha boas chances no Oscar e nas demais premiações do cinema ao redor do mundo, assim como o esforço de Leonardo DiCaprio. Duro é saber que ainda falta muito para que a vida real ganhe um final feliz, tão mais fácil de se ver na ficção.

quarta-feira, outubro 04, 2006

O Diabo Veste Prada



Quando Laura Weisberger escreveu O Diabo Veste Prada, vestiu os personagens de ficção para contar sua experiência infernal enquanto trabalhou para uma das figuras mais poderosas da moda, Anna Wintour, diretora da Vogue americana. No livro, Wintour é Miranda Pristley, a Vogue se transforma em Runway e Weisberger ganha a identidade de Adrea Sachs, uma jornalista recém-formada que consegue o emprego dos sonhos de muitas garotas (mas não o dela) e se torna assistente pessoal da editora de uma das revistas de moda mais badaladas do mundo. Como acontece nos contos de fada urbanos, Andrea é um patinho feio, a moça “gorda” (se comparada às modelos anoréxicas) e inteligente, completamente deslocada no mundo fashion, que ao longo da história sofre uma metamorfose e ganha uma bela aparência. Interessante, mas não inusitado, é o que esse processo vai fazer ao espírito da jovem. Após a imersão naquele universo, vêm os julgamentos de caráter, que por convicção da personagem ou por simples moralismo se sobrepõe à sua ambição. Por fim nos deparamos com o mito faustiano: vale a pena vender a alma?
Seguindo o caminho natural dos best sellers, o livro de Weisberger teve seus direitos comprados por Hollywood e chegou às telas esse ano. O Diabo Veste Prada (The Devil Wears Prada, Estados Unidos, 2006) é um filme de luxo. Ou, melhor dizendo, é um filme que se dá a muitos luxos. Meryl Streep como a sufocante e mimada Miranda Pristley e os figurino de milhões de dólares, tão deslumbrantes quanto caros, são alguns deles. E como produto do grande cinema de mercado, o filme consegue atingir seu objetivo: entreter o público em uma trama banal, que está longe de ser surpreendente, mas é bem arranjada e charmosa.
Por uma montagem paralela comparamos a rotina matinal de Andrea (Anne Hathaway) à de mulheres exuberantes, acostumadas ao glamour. Essa sequência de abertura traz o ritmo e o estilo necessários para lançar o espectador na história. Logo depois, encaramos a personagem em seu lugar. Andrea é mais uma pessoa comum na selva de Nova York, um ambiente que o cinema se habituou a retratar como caótico, competitivo, às vezes hostil. O desenrolar da trama é concentrado nas personagens de Meryl Streep e Anne Hathaway. Em certo momento, Nate (Adrian Grenier), o namorado de Andrea, declara o que vemos durante quase todo o filme: Miranda é a única pessoa com quem a protagonista parece se relacionar. E é dessa relação entre a megera e a garota que sem perceber está a caminho de se tornar sua pupila que surgirão os conflitos da história. A moça desengonçada aprende a ser linda e a sobreviver no universo da moda, mas entra em conflito consigo mesma por se afastar cada vez mais daquilo que queria ser.
Atrás do disfarce fútil, estão boas alfinetadas à ditadura da beleza e uma certa simpatia ao feminismo. Mas ainda que critique o mundo da alta costura, o filme não deixa de admirá-lo com um olhar apaixonado. Uma das cenas traz não só a explicação para a relevância da moda, mas também muito da própria índole do filme.
O Diabo Veste Prada é sempre elegante. A fotografia, a montagem, o ritmo acelerado imprescindível e a trilha sonora pop encontram o ponto certo para contribuir na narrativa. Meryl Streep está além das críticas como o diabo de voz aveludada e Anne Hathaway se sai bem em seu papel, ajudada por coadjuvantes donos de um timing cômico impecável como Stanely Tucci e Emily Blunt.
Seja qual for a opinião, o interesse ou a visão do espectador sobre o ambiente onde se constrói a história, ela vem imbuída de um olhar próprio, que está talvez entre o respeito e a admiração, mas que independe do público. E é isso que, dentre outras coisas, faz de O Diabo Veste Prada uma trivialidade de bom gosto.