sábado, agosto 26, 2006

Obrigado por fumar


“Jordan faz cestas. Manson mata pessoas. Eu falo. Cada um tem seu dom”. Esse não é o início, mas o final da história de Nick Naylor. O personagem vivido por Aaron Eckhart é o principal porta-voz da indústria do tabaco, um lobista das grandes empresas de cigarro que ganha a vida manipulando informações para defender os direitos dos fumantes nos Estados Unidos, enquanto tenta ser um exemplo para o filho Joey (Cameron Bright). Obrigado por fumar (Thank you for smoking, Estados Unidos, 2006) é inteligente, cínico, auto-depreciativo, escancarado, ousado e talvez mais. Explorando um humor refinado e ao mesmo tempo agressivo, usa a metalinguagem como ferramenta para o escárnio e exige do espectador não apenas senso de humor, mas um verdadeiro gosto pelo sarcasmo.
O filme dirigido por Jason Reitman é absurdo exatamente por fazer todo sentido. Assim como seu protagonista, é dotado de flexibilidade moral e se abstrai de qualquer tentativa de ser edificante. À medida que aumenta sua visibilidade, Nick é perseguido por um senador oportunista (o sempre incrível William H. Macy) e enganado por uma jornalista sedutora (a sempre insossa Kate Holmes), ligações perigosas que quase põe fim à sua vida e à sua carreira, respectivamente. Com seus altos e baixos o personagem se mantém o tempo todo em conformidade com aquilo que é, mesmo depois do ponto de virada. No final da história, Nick consegue ser o exemplo que queria para o filho, sem impor a Joey e ao público uma visão considerada “certa” e um comportamento moral. Ao contrário. Dentro de seu pragmatismo, ele é sempre coerente com as idéias que defende, personificando a máxima de que qualquer ponto de vista pode estar certo, desde que bem argumentado. O essencial é a liberdade de escolha.
O que não faltam ao longa são qualidades para serem elogiadas. O roteiro adaptado do livro de Christopher Buckley (que aparece como figurante) é filmado com talento e as cenas bem construídas são emolduradas pela ótima fotografia de Jim Whitaker. A trilha sonora elegante e clássica cai como uma luva na composição do sarcasmo e do irresistível cinismo do texto. O bom elenco, escolhido com esmero pelo diretor, dá o toque final.
Mas um dos mais saborosos trunfos se esconde em um requinte que evidencia a inteligência do enredo: a maneira como a indústria do cinema é exposta ao ridículo sem pudores, dos primórdios da aparição do filme falado em 1928 até a poderosa figura do produtor contemporâneo, interpretado por Rob Lowe. Para ilustrar como o cinema clássico fez bem à indústria do tabaco, Nick cita, por exemplo, o onipresente cigarro nas mãos da intensa Bette Davis e a primeira cena de Humphrey Boggart e Lauren Bacall, dupla icônica do charmoso gênero noir, o casal mais famoso do mundo (nas palavras de Naillor), dentro e fora das telas. Seus argumentos são fascinantes e sempre convincentes. A seqüência em que Jeff Megall (Lowe) narra uma possível cena a ser protagonizada por Brad Pitt e Catherine Zetta Jones, fumando nus em uma nave espacial depois do sexo, é impagável. “Mas o cigarro não explodiria com oxigênio do espaço?”, questiona Nick. “Nada que não possa ser ajeitado com uma fala no roteiro”, tranqüiliza Megall. O sarcasmo é tão completo que lança ao ridículo não só o cinema, mas também o público, condicionado a comprar idéias disfarçadas de um entretenimento inofensivo.
Doak Boykin, o “poderoso chefão” do tabaco interpretado por Robert Duval não se separa do charuto nem quando está com as veias entupidas em um leito de hospital, mas é interessante reparar que nenhum ator é visto fumando um cigarro durante todo o filme. Não espere sair doutrinado do cinema. Obrigado por Fumar escancara o contra-senso e o humor negro da situação que explora com elegância, respeito à sutileza e um comedimento disfarçado que o tornam especial. Se há uma moral nessa história, ela é: “pense por conta própria e, então, escolha o seu lado”. Ou não escolha nenhum.

sexta-feira, agosto 18, 2006

A Prova

"The biggest risk in life is not taking one". "If you don´t believe in yourself, who will believe in you?". Não, não são frases roubadas de odiosos manuais de auto-ajuda. Sim, parecem. Mas são as chamadas nos cartazes de A Prova. Enquanto escolhia um deles para ilustrar a crítica, achei que os dizeres me vinham a calhar. Escrever sobre filmes é das coisas que mais gosto de fazer na vida. Mas apesar de umas postagens esporádicas nos últimos meses, crítica mesmo, feita por mim, há séculos não se via por aqui. E quanto mais tempo fico sem praticar, mais me pergunto se tenho algum talento e se a cada dia não perco mais e mais o jeito. Enfim, vamos à prova.
Catherine (Gwyneth Paltrow) dedicou anos de sua juventude a cuidar do pai, Robert (Anthony Hopkings), um gênio da matemática que terminou seus dias esclerosado. Prestes a completar 27 anos, abalada pela morte recente dele, ela se mantém no casulo em que viveu durante aqueles anos difíceis, temendo herdar a loucura de Robert. Então surge Hal (Jake Gyllenhaal), um ex-aluno que acredita haver algo de produtivo nos 103 cadernos que o velho homem escreveu durante sua doença. Ela também precisará lidar com a irmã Claire (Hope Davis), que volta à Chicago para o enterro do pai, decidida a vender a casa da família e levar Catherine para Nova York.
A partir disso, não é preciso ser muito intuitivo para descobrir que a presença de Hal e os choques com a personalidade da irmã definirão o rumo de Catherine. A Prova (Proof, Estados Unidos, 2005) é um drama sério e humano, adaptação da peça homônima de David Auburn, vencedora do prêmio pullitzer e do Tony. O enredo que poderia facilmente cair no piegas e na falta de graça na transposição para o cinema se mantém firme pelos artifícios da adaptação do roteiro. Sem buscar grandes saídas, concentrando o foco na tensão do texto e da situação em si, a trama se mostra muito bem resolvida na tela, eficiente e modesta. Em concisos 100 minutos, envolve o espectador no conflito da protagonista sem fugir da simplicidade.
A peça de Auburn se tornou sucesso imediato de crítica e público. O texto seco, considerado "ultrarealista", não demorou a sair de Chicago e chegar à Broadway. Em Londres, ganhou uma elogiada montagem de John Maidden - veterano do teatro e diretor do filme - estrelada pela americana Gwyneth. No Brasil, a peça foi levada aos palcos por Aderbal Freire Filho, com Andréa Beltrão e Emílio de Melo no elenco. A galeria de personagens é pequena e seus conflitos se limitam a espaços restritos. Grande parte das ações acontece na casa de Robert e Catherine. Poucas cenas empregam figurantes e são raros os que acrescentam alguma importância ao desenrolar da história. Toda a tensão está concentrada nas situações e nos conflitos entre aqueles poucos personagens. Contando com a preciosa ajuda da trilha sonora, o longa realiza com habilidade a transição pelo ápice até o desfecho trama.
Um roteiro que descenda de um texto teatral enfrenta o perigo constante de recair em falas excessivamente explicativas e nos vícios de uma linguagem própria do palco que não costuma caber no cinema. Mas aqui a tentação não se converte em pecado. Se a direção e os atores são capazes de dar veracidade ao texto sem torná-lo enfadonho frente às câmeras, como foram capazes de fazer nesse filme, não há porque evitar o risco.
Gwyneth Paltrow, indicada ao Globo de Ouro pelo papel, repete duplamente a parceria com John Maidden. Quando a peça de Auburn ganhou o palco do West End em Londres, a atriz havia acabado de receber o Oscar por Shakespeare Apaixonado, filme de 1998 dirigido por Maidden. Amparada pelo bom trabalho dos coadjuvantes, em A Prova ela consegue se segurar com méritos na liderança. Anthony Hopkings, como de costume, exibe a boa performance com uma naturalidade que chega a parecer fácil. Hope Davis é um contraponto essencial à personagem de Gwyneth e Jake Gyllenhaal conserva o charme inerente e o talento seguro que vem lapidando. Depois de ousar como o cowboy gay de Brokeback Mountain ou com o excesso de testosterona de um solado norte-americano entediado no Golfo em Soldado Anônimo, seu personagem aqui não poderia ser mais politicamente correto. Hal é, em uma análise simples, o “salvador espiritual” da protagonista, aquele que a aproxima da redenção necessária para a resolução de seus conflitos. Logo, é inevitável que ele lance mão de um catálogo de frases de auto-ajuda típicas quando estamos perto do desfecho.
O grande drama de Catherine é resumido em uma fala de Claire: “Eu acho que você herdou parte do talento dele e parte de sua tendência à instabilidade”. O que consome a atormentada personagem, já devastada pelos anos que dedicou ao pai doente, é se perguntar até onde vai sua herança. O público é frequentemente levado por armadilhas, em um jogo que lhe permite embarcar na confusão mental da protagonista. Flash backs são recorrentes e bem encaixados, mas é pena que os requintes da história para nos confundir se diluam às vezes rápido demais, em seqüências que não demoram a se esclarecer. Ainda assim, "A Prova" é bom cinema, com seu segredo que vai além do “o que” e se esconde no “como”.