terça-feira, janeiro 31, 2006

Munique


“Polêmico”? “O filme mais corajoso de Steven Spielberg” (Cinema em Cena)? “Uma investigação provocadora sobre o terrorismo” (Terra)? Nem tanto. Segundo o diretor, seu novo longa, inspirado no atentado sofrido pela delegação de atletas israelenses por terroristas árabes durante as Olimpíadas de Munique, Alemanha, em 1972, é uma “oração pela paz”. Para mim, toda essa aclamação soa como muito barulho por pouca coisa – o que, aliás, é frequente no caso do cineasta em questão. Munique (Munich, Alemanha/Israel, 2005) trata de um tema vital e até tem uma boa abordagem, que evita os maniqueísmos. O que frustra é a impressionante capacidade de Spielberg em fazer de qualquer caso sério um pano de fundo para algo que não ultrapasse muito a complexidade de um filme de suspense-ação. Não digo que ele foi medíocre na forma de enxergar a questão, ou que se omitiu às discussões que ela levanta. Mas depois de ver um filme com a assinatura de Steven Spielberg costumo ter a sensação de que faltou algo (calma aficcionados, para tudo na vida há exceções, não me refiro a pérolas como Império do Sol, E.T. ou A Lista de Schindler, obras que nem eu ouso questionar). Sinto falta daquele subtexto, das idéias guardadas nas entrelinhas - a parte do filme que sobra para o espectador criar em sua mente. Spielberg, de alguma forma, não deixa espaço para tanto, daí a impressão frequente que me passa de nunca se afastar demais da superfície.
Sem dúvida alguma o diretor domina a técnica e a narrativa com pefeição. Mas essa habilidade rara acaba fatalmente se sobrepondo às idéias que ele explora em seus enredos. A reconstituição de época em Munique é excepcional, acrescentada de forma absolutamente adequada pela fotografia, que parece nos transportar para a época. A inserção de imagens reais, retiradas de noticiários e afins, é importante para criar no público a tensão e a consciência inteligível, quase física, de que estamos em contato com um acontecimento verídico e que ainda perturba.
Após o atentado que culminou no assassinato de onze atletas israelenses pelos palestinos - dois ainda no hotel, nove no aeroporto - e cinco dos terroristas mortos em uma tentativa de ação alemã, a então primeira ministra de Israel decide contra-atacar, para mostrar aos inimigos que “matar judeus sai caro”. Então, um grupo secreto, liderado por Avner (Eric Bana, competente) que, apesar de ligado ao Mossad, não podia revelar qualquer relação com o governo israelense, é destacado para matar cada um dos que tramaram o ocorrido na Alemanha. E tem início um thriller que toca em questões políticas e diplomáticas, como o envolvimento da CIA no Oriente Médio, a exigência de não atingir civis, o que seria desfavorável para a imagem de Israel, o dinheiro americano dado aos judeus, o perigo de atingir a Rússia em época de guerra-fria e, acima de tudo, como um conflito pode ter mais do que duas pontas, onde supostos aliados estão longe de ser incondicionais. Spielberg lança seu olhar sobre uma questão complexa, para a qual o mundo ainda não conhece respostas, e não tenta nos jogar para um dos lados da briga.
Em momento algum o diretor condena claramente o atentado de Munique, embora não disfarce o seu horror. Mas evidencia como aquilo foi intolerável para os israelenses. Durante os momentos de expectativa enfatiza o sofrimento dos dois lados: famílias judias e palestinas, esperando pelo fim de um ataque terrorista televisionado, com perdas para ambos. E aí caímos nas recorrentes e infindáveis questões do tema. Aquele tipo de ação se justificaria por tratar-se de um artifício para os palestinos serem ouvidos? Aquele povo sem pátria luta para recuperar o que acreditam ser a sua nação, que é o lar, a identidade de um povo. Estão fazendo agora o que Israel fez para conseguir seu território: é uma espécie de sucessão histórica nessa briga, por motivos questionáveis, mas que não são facilmente condenáveis. É um círculo que nunca chega ao fim, alimentado por um ódio que move atos extremos - dotados de legitimidade moral, segundo creem seus participantes.
“O lar é caro”, diz um personagem em certo momento. E Avner sentirá o peso dessas palavras quando começar a questionar o sentido de suas ações. Tudo aquilo é desculpável, é certo, justo? Nosso herói não tem certeza de que a lista de nomes a serem exterminados, dada pelo Mossad, é realmente dos que estiveram por trás de Munique. Aqueles podem ser apenas interessantes alvos políticos. “Matando-os, judeus sobrevivem” e não é isso o que mais importa? O protagonista e sua equipe são apenas outro dentre tantos grupos tratando do problema. Mas assassinar todos os que ameaçam a segurança de seu povo não é apenas fazer com que eles sejam substituídos por outros piores? No fim, terroristas árabes e Avners são farinha do mesmo saco: matadores dentro de uma guerra onde é impossível apontar um lado bom e um lado mal, retribuindo ataques e injúrias. São geradores de mortes em nome de uma causa que acreditam ser legítima, mas que vai atormentar o protagonista para sempre, até que, no fim, ele escolha se exilar de vez na América, onde poderá, quem sabe, encontrar paz, num lar aparte dos conflitos – o que, convenhamos, foi de péssimo gosto.
Por mais que possamos compreender o que se passa no interior do protagonista, isso não é suficiente para que ele estabeleça uma ligação forte com o público. A trama, com quase três horas, abarrotada de sequências de ação e suspense que intencionam ser tensas e pesadas, parece às vezes sempre a mesma coisa, e isso cansa. A história cheia de segredos cruzados e pontos misteriosos não pretende dar respostas às suas teorias conspiratórias, porque não trata de um caso simples. O tema vai muito além do atentado que impulsiona o enredo e do que o próprio filme engloba. O problema é denso. Quem continua na superfície é o diretor, que aqui até consegue incomodar às vezes, mas não a ponto de te puxar para o fundo. Munique é o que se pode esperar e não mais do que nos acostumamos a ver nos últimos tempos de Steven Spielberg. Alguns podem alegar que sua nova obra tem algo de diferente, mas a verdade é que o espírito continua o mesmo: falta alguma coisa. Em suma, nome demais para resultado de menos.

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Orgulho e Preconceito

Eis a verdade por trás do mito de Bridget Jones. Depois de uma primeira adaptação para o cinema em 1940, com Laurence Olivier e Greer Garson nos papéis principais, e da elogiada mini-série britânica protagonizada por Colin Firth e Jennifer Ehle, Orgulho e Preconceito, o livro de Jane Austin que inspirou elementos de O Diário de Bridget Jones, ganha sua terceira adaptação para as telas em um filme honesto e lindo de se ver (Pride and Prejudice, Inglaterra, 2005). Aqui é Keira Knightley quem interpreta Elizabeth Bennet, uma jovem inglesa do século XIX de personalidade forte e espirituosa que durante um baile conhece o desagradável e orgulhoso Fitzwilliam Darcy, personagem de Matthew MacFadyen. A primeira impressão fará com que a moça jure ódio ao rapaz até o fim de seus dias, mas o tempo se encarregará de mostrar que ele é bem diferente daquilo que costuma aparentar. Dificuldades como as distintas posições sociais e o comportamento incoveniente da família de Elizabeth agravam os desencontros.
Sim, premissa óbvia e trabalhada à exaustão durante esses quase 110 anos de cinema. Mas acredito que idéias simples como essa, emprestadas da boa literatura, não envelhecem. Ao contrário, mantém segredos a serem explorados. Por isso, ainda é possível revigorar um lugar comum munindo-se de talento. E o que não falta a esse filme são qualidades que lhe garantem o frescor. Em seu primeiro longa-metragem Joe Wright realizou um trabalho digno de elogios. A densidade da narrativa foi em muito acrescentada pela forma como o diretor a conduziu, criando cenas maravilhosas que sem dúvida alguma fazem o espectador absorver a trama de uma maneira toda especial. A preocupação com a profundidade de campo, a repetição de movimentos de câmera que revelam um cuidado técnico apurado, os planos-sequência, a movimentação quase coreografada dos atores em cena e os enquadramentos arrebatadores fazem toda a diferença na tela e na maneira como a história é contada. A bela fotografia, às vezes na penumbra, às vezes com feixes de luz rasgados, valoriza o ambiente bucólico e agrada os olhos. Uma trilha sonora viva emoldura com elegância o lindo quadro visual. Em suma, padrão de qualidade impecável.
O elenco não deixa faltar aquele traquejo inglês que se torna tão adorável em histórias desse tipo e participações de luxo como as de Donald Sutherland e Judi Dench são sempre um prazer. Confesso ter estranhado à princípio ver Matthew MacFadyen no papel que foi duas vezes de Colin Firth (já que Darcy saiu praticamente imutável do romance de Austin para o best-seller de Helen Fielding, podemos assim considerar). E assumo que, passado o impacto inicial, ele conseguiu me conquistar como o mocinho introspectivo e grosseiro - mas dono de um charme arrebatador - que lá para as tantas começa a provar o que já era previsível desde o princípo: ele é o homem dos sonhos de qualquer mulher. Keira Knightley, intensa e sincera, dá carisma à heroína e o inevitável romance entre os protagonistas arranca suspiros bastante audíveis da platéia. A mocinha dentro da sala de cinema que não se derreteu vendo MacFadyen caminhar no campo durante o amanhecer, indo ao encontro da amada para declarar sua paixão, tem uma pedra dentro do peito. Absolutamente irresistível!
Acho, inclusive, que aí reside o segredo do filme e de sua inspiração: o charme de época, dotado de uma inebriante tensão por algo que não é explicitado com agressividade, mas apenas sugerido, e a graça de uma historia simples, mas de forma alguma simplória, tornam-no irresistível. Defeitos? Sim, há. A edição peca um pouco, deixando a sensação de que determinados detalhes ou momentos foram suprimidos. E não nego que senti falta do mais batido dos clichês românticos ao final, ainda que ele não acrescentasse nada para a poesia do desfecho - nos últimos momentos fica fácil saber do que estou falando. O caso é o seguinte: pode acompanhar a fila do ingresso, comprar sua pipoca e se acomodar na sala de cinema, pois nenhum possível deslize tira o gostinho doce dessa projeção. Romance às antigas, lento, delicado, espontâneo e, mais do que tudo, suave. Orgulho e Preconceito é como uma barrinha de açúcar guardada na gaveta do armário há algum tempo. E é sempre bom redescobrir esse tipo de delícia num lugar tão comum. Quem dera se a vida real fosse mesmo assim.

sábado, janeiro 21, 2006

Salivando pelo segredo


Bacana aqueles dois ali. Muito.
Imagem não é tudo e nem sempre é prova de conteúdo, mas convenhamos que o cartaz de O Segredo de Brokeback Mountain atrai. Bonito e delicado, não prentende chocar logo de cara, algo que a premissa ousada sobre o envolvimento homossexual entre os dois cowboys da foto já tem feito por si só. Mas instiga. Explorando uma imagem que remete aos romances clássicos do cinema - reparem na paisagem deixada ao fundo, na posição dos protagonistas, em suas poses - soube dar a esses lugares comuns uma nova conotação ao tomá-los emprestado para ilustrar uma trama polêmica, cujo tema ainda exige uma certa coragem para ser mostrado às claras em Hollywood.
Parece bom. Será mesmo?
À partir do dia 3 de fevereiro poderemos conferir num cinema bem próximo...

sábado, janeiro 14, 2006

Soldado Anônimo


Sabe aquele velho chavão sobre estar no lugar certo na hora certa? Pois é, adaptando a premissa para o meio cinematográfico, pode-se dizer que nada melhor para ser alçado ao sucesso do que ter em mãos o roteiro certo incentivado pelo produtor certo. Em 1999, Sam Mendes, um consagrado diretor de teatro inglês estreante no cinema, provou ser também o homem certo para levar às telas um olhar corrosivo e humorado da famíla norte-americana típica no premiado Beleza Americana. Seis anos depois e apenas mais um filme no currículo (Estrada Para Perdição, de 2002), ele volta aos cinemas com Soldado Anônimo (Jarhead, Estados Unidos, 2005). O diretor ainda não repete o brilhantismo do primeiro trabalho, mas retoma a boa forma criativa, lançando mão de sua espirituosidade para contar a história de Tonny Swofford (Jake Gyllenhaal), um jovem atirador americano mandado para a primeira Guerra do Golfo.
O grande problema quando se assiste ao filme é tentar enxergar algum engajamento político nele. O que o longa tem de mais delicado - e polêmico - é justamente o fato de ser apolítico. O tema da primeira invasão dos Estados Unidos ao Iraque torna-se inevitavelmente atual devido ao contexto histórico que vivemos. Não é que o diretor ou o roteiro o evitem. A trama simplesmente não entra na questão ideológica. Assim, Soldado Anônimo torna-se um filme sobre guerra, mas não exatamente um filme de guerra. Pelo menos não da forma como estamos acostumados a ver. E embarcar com o diretor nessa visão peculiar do conflito pode ser uma experiência inusitada e bem interessante.
Em um momento ou outro o tema até rende inevitáveis alfinetadas à postura ianque, que não mudou muito ao longo da história. Mas o que o filme procura evidenciar é o comportamento dos soldados americanos. Aqueles milicos treinados para serem máquinas de extermínio, enviados ao Oriente Médio para lutar em uma guerra política que foi realmente disputada e decidida no espaço aéreo, passaram meses acampados no deserto escaldante não fazendo muito mais do que teatro para a imprensa mundial. E a espera pela entrada iminente no conflito desenvolve uma tensão que mexe de forma agressiva com suas mentes. Daí o emblema do filme: “A guerra é um inferno. Esperar para entrar nela é pior”. O que se vê em grande parte do tempo são montes de testosterona descontrolada de homens desapegados a ideologias e ávidos por colocar em prática o que lhes foi ensinado. A verdade é que aqueles jovens não se alistaram por motivos nobres ou honrosos. O exército é apenas um trabalho como qualquer outro, cujos motivos a grande maioria não se importa em questionar ou conhecer. Excluindo-se aí o personagem de Jammie Foxx e seu inflamado discurso sobre amar cada dia que passou no exército – às vezes não é possível fugir de certas convenções hollywoodianas.
A direção de Soldado Anônimo lembra um bocado a de Beleza Americana. A trilha onipresente, que parece ter vida própria (novamente de Thomas Newman); a narração sarcástica; o humor ácido, fazendo piada nos recantos mais destroçados de uma situação; a ironia disfarçada de uma sutileza que incomoda; a falta de pudor em explorar os lados mais patéticos e humilhantes de seus personagens - uma das melhores especialidades do diretor. A fotografia de Roger Deakins evidencia ao invés de disfarçar, reforçando a sensação de incômodo, tanto pelo calor quanto pela falta do que fazer no deserto. Sam Mendes foge do maniqueísmo e não se preocupa em fazer o público simpatizar com o protagonista: ele é apenas mais um soldado anônimo naquele meio. Tal postura é muito semelhante à de Nascido Para Matar, embora Stanley Kubrick trate do assunto com mais propriedade e profundidade. Além dele, o longa também faz referência explícita a Apocalypse Now e a Três Reis.
O desenrolar da trama acaba não mantendo muitas de suas proposições iniciais, o que é uma pena. Mas o diretor - que se preocupa mais com a qualidade do que com a quantidade de filmes que realiza - ainda sabe usar Hollywood com talento. Conduzindo Jake Gyllenhaal, a estrela do momento, e coadjuvantes de luxo - entre eles os oscarizados Chris Cooper e Jammie Foxx - ao primeiro conflito entre Estados Unios e Iraque, em seu novo filme Sam Mendes leva às telas o horror da guerra por um ângulo bem incomum: o da falta de engajamento. E é incrível perceber que uma produção com essa temática não precisa mostrar militância ou influenciar opiniões para afetar o espectador e fazê-lo pensar sobre a situação. O cinema começou bem em 2006 com Soldado Anônimo. Wellcome to the suck!