quarta-feira, dezembro 21, 2005

King Kong

Ao ser anunciado que Peter Jackson colocaria de novo sua equipe no batente na Nova Zelândia para dirigir uma refilmagem de King Kong, surgiu uma tensão no ar. Ou ele arruinaria sua promissora carreira, ou se sairia incrivelmente bem, não havia espaço para meios-termos. Dezessete Oscar, alguns milhões de dólares arrecadados em bilheteria e notabilidade mundial (saldo da trilogia O Senhor dos Anéis) são pesos que podem assustar. James Cameron, por exemplo, anda sumido desde Titanic (e não posso dizer que isso seja uma pena). Portanto, havia uma espera ansiosa em torno do novo projeto de Jackson. Com seu mais recente feito ele prova de cara duas coisas: um – é perfeito para dirigir superproduções e sua equipe de efeitos especiais é imbatível; dois – ele sabe contar bem uma história, seja ela qual for.
Nas mãos do homem errado o longa poderia se tornar uma refilmagem desnecessária, beirando o ridículo (como é o caso da fita de 1976). O grande diferencial dessa nova versão de King Kong (Estados Unidos/ Nova Zelândia, 2005) é, sem dúvidas, seu diretor. Dentre todas as histórias que poderia contar, Jackson resolveu tirar do limbo a do primata gigante que se apaixona por uma bela loira. A partir disso, tendo em conta os elementos da trama (cuja primeira versão data de 1933) que, em grande parte, são absurdos ou simplesmente ridículos, é perceptível que o diretor fez, sim, um trabalho competente na condução dessa aventura. Sua câmera ainda é capaz de impressionar, mesmo quando não consegue surpreender. Os aspectos técnicos de sua obra – fotografia, reconstituição de época, direção de arte, cenografia – são impecáveis, realizados com um esmero tão absoluto que imuniza críticas e dispensa comentários. É bem verdade que nada é perfeito. Ainda é impossível que certos efeitos não pareçam falsos. A sequência protagonizada por dinossauros, particularmente, já foi melhor realizada por Steven Spilberg. Mas, ainda assim, a equipe de Jackson é capaz de levar à tela momentos tão impressionantes que são difíceis de serem superados por qualquer outra coisa já vista no cinema.
Tudo em King Kong é gigante, resultado, talvez, da megalomania do diretor. A trilha sonora - que teve menos de dois meses para ser concebida - não se equipara a de O Senhor dos Anéis, mas é grandiosa e define a ação. Nas primeiras cenas, quando o conflito começa a se instaurar, ela soa como um prelúdio de todo o drama e aventura que vêm pela frente. Esses momentos iniciais são um bocado irregulares, às vezes quase forçados. Na verdade, não questionamos muito como as coisas acontecem aí, pois já sabemos de antemão que elas têm que acontecer para que a trama se desenvolva. É da Nova Iorque de 1933, em plena depressão, quando as aberrações tornavam-se espetáculos públicos, que parte o navio rumo à misteriosa Ilha da Caveira, levando os personagens dessa história. Como destaques temos o cineasta Carl Denham (Jack Black), um homem tão obcecado por fama e glória que chega a ser um lunático, a mocinha Ann Darrow (Naomi Watts), uma pobre e desesperada atriz de vaudeville, e Jack Discroll (Adrien Brody), um conhecido autor de teatro, que faz as vezes do mocinho. Quando Ann, depois de ser oferecida em sacrifício ao monstro pelos nativos da ilha, é levada por esse, Jack enfrenta todos os perigos da selva para resgatá-la. Ele é o herói perfeito: salva a heroína, protege e conforta inocentes, mas seus esforços não são suficientes. A bela enamora-se mesmo pela fera: Kong, o gorila de 7,5 metros que, em sua paixão, dedicou à moça uma devoção tão grande como nenhum ser humano foi capaz de fazer. A ligação entre a delicada mulher e o primata feroz faz o medo ser substituído pela intimidade, em um amor inatingível, fatal, mas que traz confiança, paz e entrega. Pouco importam o tamanho ou a quantidade de pêlos, Jack e Kong são rivais no amor de Ann, e isso se torna bem claro nas cenas finais.
O ótimo elenco também merece glórias. Dar veracidade aos papéis dentro de um enredo tão absurdo, com um gorila gigante, dinossauros e outras criaturas bizarras, é um desafio. A atuação sempre corre o risco de cair no falso ou no burlesco. Entra em cena então mais uma das especialidades de Peter Jackson. Ele sabe dirigir com primor os seus atores, o que faz a diferença na tela. Os protagonistas seguram o filme com taleto e o diretor sabe extrair de cada um deles aquilo que têm de mais peculiar para compor os personagens: o charme inexplicável de Adrien Brody, o humor intrínseco de Jack Black, a intensidade delicada de Naomi Watts. E a absoluta força expressiva do gorila que dá título ao filme – mais uma vez Andy Serkis por trás de uma criatura difícil de crer que seja digital.
O que há de mais em King Kong? Números astronômicos (dentre eles o cachê de U$20 milhões do diretor e o orçamento de U$207 milhões do filme), efeitos de embasbacar, ação absurda e quase ininterrupta de tirar o fôlego, uma trama bem desenvolvida e um drama capaz de gerar emoção sincera. Graças a Peter Jackson e seus colaboradores, o que vemos durante as exageradas três horas de projeção é um entretenimento de qualidade, homenageando o original de 1933. E se esse neozelandês determinado já conseguiu conquistar o mundo com a saga dos hobbits, elfos e homens de virtude que chegaram ao extremo de suas forças para proteger um anel, por que não dar uma chance ao macaquinho que carrega um amor tão grave quanto o seu timbre de voz?

terça-feira, dezembro 20, 2005

As Crônicas de Nárnia: o Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa

Um mundo fantástico povoado por seres incríveis, palco de uma aventura épica. Seria essa uma nova versão da famosa trilogia que arrasou as bilheterias do mundo todo? Não, não se trata de O Senhor dos Anéis, mas de uma obra com uma premissa bem semelhante. As Crônicas de Nárnia: o Leão, a Feiticeira e o Gurada-Roupa (The Chronicles of Narnia: The Lion, the Witch and the Wardrobe, Estados Unidos, 2005) é a mais recente adaptação dos contos homônimos de C. S. Lewis – a primeira para o cinema, no entanto. As semelhanças entre as duas histórias não são, todavia, mera coincidência e as comparações são inevitáveis. Lewis era discípulo de J. R. R. Tolkien, autor da saga do anel. Esse, católico devoto, convenceu o amigo e colega a aceitar o cristianismo. E embora nunca tenha se convertido a nenhuma de suas denominações, Lewis tornou-se um cristão militante. Mais um pensador sobre a fé do que um seguidor de dogmas, na verdade. Suas Crônicas de Nárnia, execradas por Tolkien, são uma miscelânea de magia, misticismo e simbolismo cristão.
A produção não tem a imponência e magnitude de O Senhor dos Anéis, mas merece respeito. Torna-se um caso peculiar de filme para crianças, exatamente por ser infantil. De uns tempos pra cá, as produções voltadas para os pequenos têm refletido temáticas menos ingênuas, na tentativa óbvia de não agradar apenas às crianças, mas também aos mais velhos, que acompanham a meninada ao cinema. Dirigida por Andrew Adamson (dos dois Shrek, alguns dos infantis mais adultos de que se têm notícias), Nárnia dá credibilidade com elegância às fantasias dos mais novos.
Não que falte à história idéias mais elaboradas entre uma brincadeira de criança e outra. Do Minotauro ao leão que dá sua vida para salvar um pecador e torna a viver, o que há em abundância na obra de Lewis são referências embutidas nas entrelinhas - sejam da mitologia grega ou da cristã. Aslam (voz de Liam Neeson) é o verdadeiro rei, o messias há tanto esperado e os quatro irmãos humanos são a chave da profecia que se cumpre: a libertação de Nárnia, que há cem anos vivia coberta por uma neve eterna, sob a tirania da Feiticeira Branca (Tilda Swinton). Mas, apesar de todo esse subtexto, As Crônicas de Nárnia é essencialmente uma história infantil, sobre as fantasias e o universo de imaginação que existem na mente das crianças.
Os heróis são os Pevensie (os filhos de Adão e as filhas de Eva): irmãos ingleses levados para o interior quando começam os bombardeios alemães a Londres durante a Segunda Guerra Mundial. Em um dos quartos da nova casa, descobrem um guarda-roupa cujo fundo é uma passagem para Nárnia e, a partir daí, terá início uma luta épica para salvar esse reino mágico, povoado por animais falantes, faunos, centauros e criaturas monstruosas. As crianças serão cavaleiros, reis e rainhas nessa terra. Por fim, as fantasias soam tão verdadeiras que já não sabemos mais se o mundo real fica dentro ou fora do armário.
O primeiro momento do filme, que transcorre à medida que os irmãos vão, um a um, descobrindo o segredo do guarda-roupa, é adorável. Muito bem feito e desenvolvido, carregado de suspensão e mistério. São essas primeiras cenas que conquistam o público e fazem-no se interessar pela história. O meio da trama é mais irregular e cai um pouco, mas Adamson parece perceber a falha e tenta consertá-la nos últimos momentos, em uma batalha de encher os olhos entre a Feiticeira Branca e os seguidores de Aslam. Os momentos finais recuperam a doçura dos primeiros. O elenco infanto-juvenil tem carisma e, considerando-se que na maior parte do tempo contracenaram com “dublês” dos personagens digitais, fizeram bonito. Georgie Henley se destaca como a pequena Lucy, encantadora e sincera ao extremo, sobretudo nas cenas com James McAvoy (também encantador como fauno Sr. Tumnus).
Tecnicamente, o filme não é ruim. Tem bons efeitos, mas não faz nada além daquilo que já foi mostrado em produções como a de Peter Jackson ou em alguma das sagas de Harry Potter. Muitas vezes não chega nem perto de fazê-lo e não é por eles que Nárnia se destaca.
Não pretendo discutir se a versão cinematográfica da aventura dos irmãos Pevensie foi realizada em conformidade com o livro. Toda essa discussão de fidelidade à obra original costuma me soar um bocado recorrente. Um livro é um livro, demora dias, semanas ou meses para ser lido e absorvido de acordo com a imaginação de quem o tem em mãos, e não é a ele que se refere a minha análise. Um filme é um filme, materialização do que um determinado grupo imaginou sobre uma história e leva apenas algumas horas para ser consumido. É a isso que me atenho. Se As Crônicas de Nárnia conseguiu ser o retrato perfeito do que Andrew Adamson e sua equipe imaginaram para o livro de C. S. Lewis, eu não sei. O filme é bonito, caprichado, delicado e honesto. Tem suas falhas e não consegue ser grandioso a ponto de embasbacar. De quaquer forma, sendo o primeiro trabalho de Adamson em um set de gravações, à frente de atores de carne e osso em uma super-produção, mostrou-se um feito competente do pai de Shrek. Se ele continuar a seguir as pegadas de Peter Jackson na Nova Zelândia, pode ser que se mostre um discípulo bem interessante.