quinta-feira, abril 13, 2006

V de Vingança


“Lembre-se, lembre-se, do 5 de novembro, a traição, a pólvora e o ardil”. Em 5 de novembro de 1605, o inglês Guy Fawkes juntou-se a aliados na tentativa de destruir o rei James I, explodindo o Parlamento, mas o grupo foi descoberto, torturado e enforcado. 400 anos depois, a Inglaterra foi resgatada de um período de caos por um governo totalitário, em uma realidade alternativa onde a Alemanha nazista venceu a Segunda Guerra Mundial e a guerra civil destruiu os Estados Unidos, reduzindo-os novamente ao status de colônia. Nessa visão arrojada do futuro elaborada por Alan Moore, todos os aspectos da vida civil são censurados pelo Estado fascista, que tem “olhos, ouvidos, nariz e dedos”. Liberdades individuais, como a opção sexual, a cultura e a expressão, são tolhidas por esse governo tirânico, que usa a mídia para manter o povo anestesiado e sob controle. “Força pela união. União pela fé”, é o lema que rege essa assustadora Inglaterra fictícia. Dentro dessa sociedade dominada pelo medo emerge um anti-herói anarquista, de codinome V (que nas telas ganhou o corpo e a voz do “Agente Smith” Hugo Weaving). Com um visual inspirado em Guy Fawkes, trajando capa, peruca e uma máscara sorridente que parece ironizar a opressão em que vive a Inglaterra, ele tenta despertar a sociedade para a obrigação de deixar o presente para trás e criar um novo futuro. Em uma de suas missões pela noite, V conhece Evey Hammond (Natalie Portman), uma jovem que salva do perigo e transforma numa espécie de pupila.
Publicada na década de 80, V de Vingança é considerada por muitos uma das melhores HQs de todos os tempos. Depois de Jack – do Inferno e A Liga Extraordinária, Alan Moore viu mais um de seus quadrinhos ganhar as telonas, em uma produção dos irmãos Wachowsky (V for Vendetta, Estados Unidos/Alemanha, 2006), criadores de Matrix e grandes fãs da série. Moore já declarou não ter interesse no cinema e ficou irritado ao ser dito que ele estaria envolvido na adaptação. O filme dirigido pelo estreante James McTeigue parece ter decepcionado não só o pai dos quadrinhos, mas também os fãs. Eu, que não conheço as HQs e me interesso apenas pelos aspectos cinematográficos dessa história, aproveito a opinião de David Lloyd, o desenhista da série, que embora tenha achado o roteiro muito diferente dos quadrinhos considerou-o um bom thriller de ação, para entrar na análise do filme.
Apesar do conceito denso, V de Vingança é escancaradamente um filme comercial. Um típico produto vendável de Hollywood: pop, futurista, movimentado e estiloso, como seu irmão Matrix, do qual empresta algo do visual e dos efeitos. É um belo exemplo de blockbuster com eficiência e qualidade, e de como o cinema faz uso de sua linguagem e técnicas para conduzir as emoções do espectador. O ritmo é ágil e a montagem, impecável. Ela possibilita o compasso intricado do filme e atiça o cérebro da platéia. Costurando os planos de forma a associar ações de personagens diferentes ela lança mão de um artifício que nada tem de inovador, mas mostra um bom resultado estratégico. Cada enquadramento é minuciosamente escolhido para aumentar o impacto sobre o público e é sempre emocionante observar um close-up de V prestes a enfrentar seus inimigos. A música imponente realiza bem sua função que é, por excelência, criar o clima e despertar os sentidos em cenas emblemáticas. Até os clichês melodramáticos que o roteiro optou por adotar funcionam, sem serem prejudiciais (e vale lembrar que melodrama não é um conceito pejorativo). V de Vingança ilustra a fórmula que o cinema descobriu e tomou para si: como aliar de forma previsível, mas imperceptível, seus recursos para entreter o espectador em seu jogo.
É ainda um filme que se sai bem em todos os gêneros em que possa se encaixar. É um bom suspense, uma boa ficção científica com metáfora política (o texto de Moore segue uma linha parecida a 1984, de George Orwell, e ao que tudo indica ele se baseou na administração da ex-primeira ministra britânica Margareth Tatcher para criar sua série) e soa real exatamente por ter consciência o tempo todo de que não passa de uma ficção. “O povo não deveria temer o governo. O governo é que deveria temer o povo”. Em um mundo sombrio onde o governo vigia a liberdade, quem vigia o governo? A paz deve ter como custo a integridade dos cidadãos? A luta de V contra a estupidez dos dirigentes da nação desencadeia um efeito dominó – uma metáfora clara no filme – e as idéias anarquistas defendidas pelo terrorista se espalham até culminarem no caos que construirá uma nova era.
Hugo Weaving compõe um vilão-herói saboroso. O mérito maior vai para seu trabalho de voz, já que ele passa o filme inteiro enclausurado em uma máscara. V tem todas as características de um legítimo herói noir. Os comentários acidamente espirituosos que acompanham cada confronto, o mistério pessoal que vai sendo revelado ao longo da trama, a ligação com um passado que moldou seu caráter e o seguirá para o resto da vida, o envolvimento com uma mulher bela, forte, inteligente e apaixonada que o protagonista fatalmente abandonará ao final da história por não poder se libertar do passado. V é um homem, mas o rosto por trás da máscara não é mais que os músculos por trás da pele ou os ossos por trás dos músculos. V é, acima de tudo, uma idéia e por isso o personagem mostra um caráter tão deliciosamente contraditório. Um homem pode ser morto e esquecido. Idéias são à prova de balas. Permanecem vivas e ainda podem mudar o mundo 400 anos depois.
A relação entre V e Evey é múltipla e se transforma o tempo todo. Eles são mestre e pupila, homem e mulher, pai e filha. Natalie Portman entrou de cabeça – e sem cabelo, se me permitem uma piadinha infame – no enredo e dá conta das mudanças na nuance de Evey, desde a charmosa e nada ingênua heroína noir (faceta evidente na cena em ela que dança com V na galeria das sombras), a uma personagem dramática que precisa amadurecer ao longo da história. Ainda dentro do noir, vale destacar o papel do detetive interpretado por Stephen Rea, responsável por desvendar o mistério da trama, sempre munido de sarcasmos e frases de efeito.
Se for entendida e aproveitada como puro cinema, essa superprodução rende um ótimo programa, capaz de entreter e empolgar durante seus agitados 132 minutos de projeção. V de Vingança, o filme, é isso, um produto bem feito do cinema comercial. Para quem é fã desse tipo de diversão, fica o conselho: veja e, se possível, reveja.

quinta-feira, abril 06, 2006

Espíritos [por Felipe Sembalista]

Existem certos gêneros dentro do cinema aonde o número de títulos lançados é tão grande que se tornam muito iguais, e um exemplo disso são os filmes de terror. Algumas boas surpresas à parte, a maioria gira em torno de um assassino em série que mata jovens adolescentes ou então um grupo de pessoas que se perde e deve lutar com algo (ou alguém) pela sobrevivência em um local inóspito. Uma certa originalidade foi servida ao público recentemente, com títulos como O Chamado e Visões, de roteiro ou produção oriental. E eis que surge Espíritos – A Morte Está Ao Seu Lado (Shutter. Tailândia, 2004) nos cinemas brasileiros. Dono da maior bilheteria do ano em seu país natal e com um trailer pra lá de macabro, me causou boas perspectivas.
O enredo gira em torno de dois jovens que, ao voltarem de carro para casa, acabam atropelando uma outra jovem e vão embora sem prestar socorro. A partir daí, ambos começam a notar sinais estranhos em fotografias, como vultos e supostas aparições de espíritos. O que era para ser um filme interessante pelo tema tratado, no entanto, se revelou uma decepção. Repetindo a fórmula de incontáveis filmes norte-americanos, o filme cai no erro de produzir apenas alguns bons sustos durante a projeção, e nada mais. Não é original nas situações e imagens, assim como não dá medo, como sugere o seu trailer.
As atuações dos desconhecidos Ananda Everingham (Thun) e Natthaweeranuch Thongmee (Jane) são apenas boas, e a presença de coadjuvantes é mínima. A montagem não segue um estilo norte-americano, mas isso não quer dizer que se trata de um elemento que ajuda o filme. Pelo contrário, em certos trechos há um certo desencontro de continuidade na história. A trilha sonora é discreta, e está presente apenas nas seqüências de maior movimentação na tela. Longos intervalos de silêncio causam um certo murmurinho no cinema, que tem como público predominante adolescentes e jovens.
O que era para ser um filme interessante, com um terror adulto e psicológico, acaba se tornando no final das contas nada mais do que um filme de terror com situações e imagens comuns. Em certos momentos, o tal “espírito” chega a ser até mesmo engraçado. A ressalva fica para o final do filme, que conta com um toque interessante e macabro de originalidade. E só.