domingo, julho 02, 2006

Joga pedra na Leni?

Leni Riefenstahl, a controversa e brilhante cineasta alemã, estreou no cinema como atriz. Estrelou vários filmes de montanha (gênero clássico alemão, uma espécie de western germânico) até ser convidada para dirigir A Luz Azul, uma ficção, estilo onde residia seu interesse a princípio. Sobre como a cineasta teria se aproximado do líder do Terceiro Reich, afirmam algumas fontes que ela se fascinou pela capacidade oratória de Hittler, depois de vê-lo discursar em um comício em 1932. Outras, como a própria Leni, contam que ela foi procurada por Hittler depois que esse assistiu A Luz Azul. Após dirigir, em 1933, um curta-metragem sobre o partido nazista, foi convidada por Hittler para filmar a convenção anual do Partido Nacional Socialista em Nuremberg, em 1934. Leni recusou o convite e sugeriu ao líder alemão que contratasse Walter Ruttmann para o trabalho, mas voltou atrás. O Triunfo da Vontade (Der Triumph des Willens, 1936) foi a maior superprodução da época, considerada uma das melhores obras de propaganda já produzidas, glorificando Hittler, embora a cineasta afirme que seus propósitos eram estritamente documentais.
Arquitetura da Destruição (Architektur des Untergangs, Suécia, 1989), documentário de Peter Cohen, explora a idéia de como Adolf Hittler, um confesso artista frustrado, transferiu para a arena da política, da guerra e da moderna forma de genocídio seus ideais megalomaníacos de estética e arte. "Só entende o Nacional-Socialismo quem conhece Wagner”, são palavras do Führer. Aos 15 anos, Hittler assistiu em Linz, sua pequena cidade natal, a ópera Rienzi e, segundo o próprio, impressionado com a estética wagneriana, “foi naquela hora que tudo começou”. A encenação da ópera foi posteriormente empregada nos “comícios de pseudo-arte”, onde, como diz o narrador do filme de Cohen, o então ditador da Alemanha era “cenógrafo, diretor e ator principal”. O cinema de Triunfo da Vontade representou a perfeição desses espetáculos de força e poder.
Acusada de usar prisioneiros em seus sets de filmagem, Leni passou quatro anos presa em um campo de concentração francês após a Segunda Guerra, mas ao fim do julgamento foi considerada apenas “simpatizante” do nazismo. Seu Olympia (1938), que registrou as Olimpíadas de Munique em 1936, inaugurou a tradição da cobertura de eventos esportivos. Com a grande sacada, até então inédita, de unir o acontecimento esportivo a cobertura midiática, ela empregou técnicas fenomenais para a época, com ângulos incomuns de câmera, técnicas de montagem sofisticadas, close ups extremos e nus, entre outras. Aqueles Jogos Olímpicos foram considerados as “Olimpíadas de Hittler” e isso, por si só, já renderia um filme imbuído de propaganda política. No entanto, os defensores de Riefenstahl citam momentos do documentário, quando o rosto do Führer é filmado na vitória do afro-americano Jesse Owens, ou a aparição de outros vencedores não-arianos, alegando que tal imagem não se encaixa na idéia de superioridade racial nazista. Mas é fato também que o filme remete constantemente a Hittler e a outras figuras nazistas enquanto documenta o espetáculo olímpico.
Na década de 1930, a proposta nacional-socialista procurou retomar a idéia da beleza clássica renascentista, desconstruída pelas vanguardas da década de dez. O discurso da beleza e da perfeição casava perfeitamente com a ideologia nazista e Hittler se imaginava um especialista em artes. Quando invadiu a França, poupou Paris da destruição por considerá-la linda. Acreditava que quando a Berlim de seus caprichos estéticos estivesse pronta, Paris seria apenas uma sombra. A valorização da pintura, da escultura e, como não poderia deixar de ser, do cinema, das Belas Artes em geral, se tornou um competente reforço ao programa nazista e a “nova arte alemã” foi ganhando traços cada vez mais definidos a partir dos primeiros eventos culturais. O cinema de Riefenstahl, embora acusado por razões justas de propagandista, tinha um trato muito forte com a beleza, com suas cenas grandiosas, herdadas em parte dos filmes de montanha, ao contrário dos filmes clássicos e incisivos de propaganda anti-semita, que justificavam descaradamente o genocídio.
Leni tentou produzir outros filmes no pós-guerra, mas sofreu um boicote que a impediu de financiar suas produções. Declarou posteriormente que era fascinada pelos nazistas, mas que, politicamente ingênua, ignorava as barbaridades cometidas por eles, posição que seus críticos consideram absurda. Riefesnstahl foi uma talentosa artista que, como tantos outros, serviu a propósitos políticos de “grande extensão estética”, como dispara o narrador de Arquitetura da Destruição. As inovações técnicas e estéticas de Olympia são inquestionáveis e influenciam ainda hoje as coberturas esportivas de televisão. Como artista, ela desenvolveu um trabalho singular, mas a ideologia que abraçou e a propaganda imersa em seus documentários, sofisticada mas inegável, causa rejeição em muitos.
O nacional-socialismo se valeu de toda a tradição clássica alemã, bastante filosófica, e a empregou de forma rasa, tirando proveito da radicalização da questão ideológica no entre-guerras. Vale considerar que, embora o nazismo seja uma dos capítulos mais atrozes da história do século XX e a arte tenha lhe servido como impulso e justificação de atos inumanos, não foi apenas o Estado fascista de Hittler que se valeu do cinema-documentário como propaganda política. Nos Estados Unidos, diretores como John Huston e Frank Capra foram contratados pelo governo para produzir filmes bélicos. No Brasil, foi criado por Getúlio Vargas o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), com o mesmo propósito de desenvolver documentários de propaganda, em um projeto que envolveu nosso pioneiro Humberto Mauro.
Talento e propaganda política podem andar juntos, foi o que nos mostrou Leni. Difícil é dizer até onde sua arte deve ser julgada, ou dissociada da ideologia a que serviu. Fica a pergunta: merece pedras?