quarta-feira, outubro 26, 2005

O de sempre

Ela tirou os olhos do prato e olhou pra ele. “Cinco anos”, pensava. Há cinco anos atrás as coisas eram diferentes. Mas depois de tantos dias, tantos meses, tantos anos juntos, certas coisas passaram a ser orgânicas. O cinema da sexta a noite. Não importava mais que filme era. O futebol de domingo na televisão. Ela já nem se dava conta de que nunca gostou de futebol. A visita aos pais de quinze em quinze dias. Aquele silêncio tão comum parecia-lhe agora constrangedor. Os dois com os olhos no prato, distantes em seus pensamentos. Aquilo não parecia uma comemoração. De repente ela se deu conta de que há muito todas as comemorações eram assim. Sem surpresas, sem entusiasmo. “Será, meu Deus, que nos tornamos um daqueles casais de quem sempre tive pena?”. Ela pensava.
Ele não pensava. Com os olhos no prato, comia a refeição sem reparar no sabor. Não gostava de pensar. Não naquilo. Pensar pra que? Os dois já haviam se acostumado. Pensar se tornou um trabalho desnecessário. Uma ameaça à estabilidade. Mas por um momento ele lembrou do tempo em que a estabilidade não existia. Havia paixão. Havia algo que ele não sabia definir, mas que há muito já não sentia. Estranho lembrar assim de um tempo que lhe parecia tão longe.
“Será, meu Deus, que somos mais um daqueles casais sem vida?”. Ela pensava. Será que depois de tanto tempo eles haviam esquecido o porque de estarem juntos? Comodismo talvez. Tinham afinidades. Quase não brigavam. Parecia um bom sinal. Será que aqueles dois tinham recebido a sorte de um amor tranqüilo? “Será que eu quero esse amor tranqüilo?”. Ela pensava. E tinha medo de saber a reposta. Medo de descobrir que o que ela queria mesmo era sentir o sangue circulando nas veias novamente. Os olhos se encheram de lágrimas e ela voltou a olhar para o prato.
Ele ainda olhava para o prato. Não tinha vontade de erguer seus olhos e encontrar os dela. Era preciso dizer alguma coisa. Qualquer coisa. Mas ele não tinha nada a dizer. “Por que a cada dia que passa temos menos a nos dizer?”. Ele pensava. E tentou não pensar. Por que de repente não conseguia parar de pensar? Ele não costumava pensar. Não naquilo. Pensar pra que? Os dois já haviam se acostumado. Pensar se tornou um trabalho desnecessário.
Ela mantinha os olhos no prato ainda cheio. Aquele nó na garganta não deixava a comida descer. Ele não percebeu que ela segurava o choro. Se não segurasse, seria um pranto de horas. Aquilo não parecia uma comemoração. De repente ela se deu conta de que há muito todas as comemorações eram tristes. E de que os dias eram tristes. Teve vontade de gritar e sair correndo daquele restaurante. Correr pra longe dele. Por que não se mudava pra algum lugar bem longe? Longe o suficiente pra deixar aquele nó na garganta perdido no meio da estrada. “Rio de Janeiro, talvez”. Ela pensava. Lá era bonito. Ela poderia freqüentar a praia e ter uma cor de pele diferente daquele amarelo mofado de quem não saia do escritório. “Será que nós também estamos mofados?”. Ela pensava. E teve vontade de gritar e de correr.
Ele não queria mais pensar no quanto pensar havia se tornado um trabalho desnecessário. Aquele silêncio de vinte minutos parecia ter durado a vida toda. Ele olhou para o prato dela, ainda cheio. E percebeu que ela estava segurando o choro. “Chorar por que, meu Deus?”. Ele pensava. E começou a achar que aquilo não parecia uma comemoração. E que todas as comemorações haviam se tornado tristes assim. Parou de comer a refeição sem sabor porque o nó que surgiu na garganta não deixava a comida descer. O que poderia ser feito? Acabar com tudo? Deixá-la livre? Fugir pra algum lugar bem longe? “Não!”. Ele pensava. Não podia. Por que não podia viver sem ela? Há cinco anos atrás as coisas eram diferentes. Mas talvez ele ainda a amasse. Há muito tempo não pensava sobre isso.
Ela teve vontade de gritar e correr. Mas não o fez. “E por que não?”, pensava. Por que não sabia viver sem ele? Depois daqueles cinco anos talvez ela ainda o amasse. Há muito tempo não pensava em outra coisa. Não estava feliz. Seria feliz sem ele? Ela não queria mais pensar. Não naquilo. Pensar pra que? Os dois já haviam se acostumado.
Ela tirou os olhos do prato ainda cheio e se deu conta de que os olhos dele olhavam pra ela. E a voz dele ainda tímida quebrou aquele silêncio de vinte minutos que parecia ter durado a vida toda. “Mais vinho?”. Ele perguntou. “Ou vai ser outra coisa?”. Ela deu um sorriso triste e respondeu sem entusiasmo. “O de sempre”. E depois de fazerem o pedido de sempre ao garçom de sempre, os dois se olharam por um segundo antes de voltarem os olhos para os pratos de sempre. Não queriam mais pensar. Não naquilo. Pensar pra que? Os dois já haviam se acostumado.

terça-feira, outubro 25, 2005

A Noiva Cadáver

Uma história sobre paixão, romance e assassinato a sangue frio. Uma animação em stop-motion com as vozes de Jhonny Depp e Helena Bonhan Carter. Um filme de Tim Burton. A Noiva Cadáver (Corpse Bride, EUA, 2005) tem motivos de sobra para atrair o público. Poucos cineastas contemporâneos despertam o amor – ou o ódio – do espectador como esse excêntrico californiano de 47 anos. Polêmicas à parte, há algo que não se pode negar. Burton consegue imprimir com habilidade sua marca às produções que dirige. E A Noiva Cadáver não desmente seu estilo. A começar pelas parcerias que repetiu. Essa é a quinta vez em que Jhonny Depp protagoniza um filme de Tim Burton. É também seu quarto trabalho com Helena Bonhan Carter (sua esposa na vida real), o terceiro com Chistopher Lee e o segundo com Albert Finney. E se você já está familiarizado com o estilo do diretor de Edward Mãos de Tesoura e Ed Wood, sabe que em sua cartilha jamais faltam a fotografia sombria, o humor irônico, o sarcasmo e uma sorte de peculiares bizarrices nas entrelinhas.
Nessa animação de 78 minutos, em que os protagonistas são bonecos de massinha, Burton tira mais uma vez da gaveta seu universo singular para contar a história de Victor Van Dorst (Jhonny Depp), um jovem que está de casamento marcado com uma moça que sequer conhece. Os pais de Victor são ricos emergentes e desejam ver o filho casado com uma jovem de família tradicional. Em contrapartida, os pais de Victoria Everglot (Emily Watson), a noiva prometida, estão falidos e vêem no casamento da filha a única saída para a penúria. Para os Van Dorst e os Everglot, o matrimônio não é mais do que um acordo de interesses. Útil, mas nunca agradável. Victor e Victoria sofrem com esse espírito prático dos pais. Ambos são românticos, sonhadores e sensíveis. Sentem-se como estranhos dentro de suas próprias famílias. E ao se conhecerem, um dia antes do casamento, apaixonam-se imediatamente. Mas uma reviravolta acontece e, num terrível engano, Victor acaba se casando com Emily (Helena Bonhan Carter), a noiva cadáver.
No universo de Tim Burton, nada é muito simples. E ao longo da história vamos percebendo que nesse filme não há apenas uma mocinha que complete o herói. Em determinado momento não sabemos mais qual das duas merece ficar com Victor, porque ambas são perfeitas para ele. Emily não respira e não tem a face corada de Victoria. Tem um corpo já em decomposição, com ossos à mostra, um olho que salta e um verme metido à consciência dentro da cabeça. Mas tem sensibilidade para a música, para a dança e aspira por um amor que não teve em vida. E ainda que seu coração não bata mais, ela é capaz de derramar lágrimas ao perceber que Victor está envolvido com outra mulher.
A fotografia sombria, em tom cinzento, do mundo dos vivos lembra o ambiente medonho de A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça. O mundo de cima é frio e assustador. Mais triste do que o mundo de baixo, terra dos mortos, cujo colorido lembra bastante Os Fantasmas se Divertem. Para Tim Burton, os defuntos parecem ter mais alegria e desprendimento do que os vivos. Danny Elfman, outro parceiro habitual do diretor, volta a colaborar na composição da trilha. As músicas que fazem as vezes de diálogos são divertidas, explicativas e repletas de alfinetadas. Têm um humor afiado que consegue fazer rir e emocionar.
Em A Noiva Cadáver Tim Burton está em casa: no mundo incomum que sabe delinear tão bem, ao lado de gente em quem confia e se sente à vontade. Quem aprendeu a apreciar suas peculiaridades sabe que mergulhar no universo de Burton é sempre uma experiência nova e interessante. Nessa sua obra mais recente, esse cineasta nada convencional mostra outra vez que estranhamento também pode ser sinônimo de beleza, lirismo e poesia.

quinta-feira, outubro 20, 2005

Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças

Qual seria a sua reação ao ler uma mensagem dizendo que o amor da sua vida passou por uma operação que apagou todas as memórias referentes a você da mente dele? Em nosso mundo real isso seria inimaginável. Mas quando o assunto é Charlie Kauffman, nunca podemos esperar o trivial. Colocando John Cusack para trabalhar no andar sete e meio de um edifício em Quero Ser John Malkovich, de 1999, ou emprestando sua identidade e a de um irmão gêmeo a Nicolas Cage em Adaptação, de 2002, Kauffman ignora o sentido da palavra inimaginável. Em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spoteless Mind, EUA, 2004) as bizarrices do roteirista são mais doces do que nunca. Dessa vez é Jim Carrey quem encarna o protagonista introspectivo e desiludido, marca registrada de Charlie. Depois de descobrir que sua ex-namorada Clementine (Kate Winslet) havia realizado um tratamento para apagar as lembranças de seu conturbado relacionamento, Joel Barish (Carrey) decide se submeter ao mesmo processo. Mas enquanto suas memórias vão sendo apagadas, Joel percebe que pior do que passar pela dor da separação seria esquecer todas as boas lembranças. E a partir daí ele vai travar uma batalha épica dentro de sua mente para não deixar que Clementine seja irremediavelmente apagada.
Brilho Eterno mostra nas telas um elenco talentosíssimo, de nomes já respeitados em Hollywood, como Jim Carrey e Kate Winslet, e outros que estão firmando agora seus lugares, como Mark Ruffallo, Kirstin Dunst e Elijah Wood. Mas o diretor Michael Gondry foi sincero ao declarar que a verdadeira estrela do filme é mesmo Charlie Kauffman. Depois de seis anos escrevendo para programas de TV, Kauffman estreou no universo do cinema com Quero Ser John Malkovich e nessa primeira experiência já provou ao mundo ser dono de uma criatividade rara. O talento lhe abriu as portas da indústria cinematográfica e despertou o interesse das grandes estrelas em seus textos peculiares. E se existe uma lição a ser tirada de seus cinco trabalhos no cinema é: jamais limite seu controle criativo. Kauffman se tornou um roteirista de nome tão forte quanto o de um diretor e, na velha rixa entre as áreas de roteiro e direção para imprimir suas marcas às produções, ajudou a demonstrar que, ao invés de uma disputa, o ideal seria uma aliança entre as duas funções. Trabalhando dessa forma, realizou belos trabalhos em parceria com Spike Jonze (Quero Ser John Malcovich, Adaptação) e Michael Gondry (também diretor de A Natureza Quase Humana, de 2001). Mas foi deixado de fora das filmagens e das mudanças no texto de Confissões de Uma mente Perigosa, dirigido por George Clooney em 2002. O resultado foi um filme com roteiro defasado, sem o brilhantismo dos demais.
Na mente imprevisível de Charlie Kauffman os personagens ganham traços de sua própria personalidade ou características que lhe atraem. Talvez venha daí a impressão freqüente de que, por mais improváveis que sejam as bases do mundo que ele cria, o roteirista sabe bem do que está falando. Aquele universo estranho, rico de subjetividade e metalinguagem, existe dentro dele. E Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças não foge ao estilo. A começar pelo título, tirado do poema Eloisa to Abelard, de Alexander Pope. Kauffman já havia feito referência ao poema em um show de marionetes de Quero Ser John Malkovich e, procurando citações para Mary, a recepcionista vivida por Kirstin Dunst, se deparou com o seguinte trecho: “Como é feliz o destino do inocente vestal. Esquecendo o mundo, pelo mundo esquecido. Brilho eterno de uma mente sem lembranças. Cada prece aceita e cada desejo atendido”. Gostou da melancolia desse pensamento e acreditou não haver título mais cabível. O filme é uma comédia-romântica triste, lírica e delicada que desperta alguns questionamentos. Se você e o seu amor tivessem uma nova chance, se arriscariam de novo mesmo sabendo que o final poderia não ser feliz? Vale a pena apagar uma parte da sua vida para evitar o sofrimento? O amor sobrevive mesmo a tudo?
O filme tem início no dia dos namorados de 2004. Desiludido, achando sua vida desinteressante, Joel Barish, apesar de não ser uma pessoa impulsiva, mata o trabalho e vai para Montauk, sem saber bem o porque, já que a praia está gelada em fevereiro. Lá conhece Clementine, e se questiona “por que eu me apaixono por qualquer mulher que me dê um mínimo de atenção”? O interesse que surge entre os dois, criaturas absolutamente diferentes, é imediato. E então vamos testemunhando a intimidade estranha de duas pessoas que acabaram de se conhecer, para, instantes depois, observarmos Joey dirigindo aos prantos, numa atitude clara de quem está sofrendo pelo fim de um relacionamento. Muito da história se passa na mente de Joel, enquanto suas memórias vão sendo apagadas. E essa invencionice de Kauffman foi o pretexto ideal para que o diretor Michael Gondry e sua equipe criassem o espetáculo visual que se vê na tela. Brilho Eterno é um ótimo exemplo de como a técnica pode agir a favor da narrativa no cinema. Jump-cuts (ou cortes que omitem ação), passagens de uma seqüência para outra sem cortes, imagens escuras que dão destaque aos pontos de luz colorida e uma capacidade imensa de aproveitar o improviso (como a cena do circo, que inicialmente não estava prevista no roteiro) constroem o universo espetacular e imprevisível do filme. Aqui, tudo é verossímil, porque grande parte da ação transcorre nos corredores da mente de Joel, como num sonho.
A peculiaridade de Charlie Kauffman, que se torna nítida nesse filme, é ser capaz de fazer o absurdo parecer natural de uma forma única e incrivelmente doce. Mas o mérito pela beleza e poesia de Brilho Eterno não pode ser dado somente ao roteiro. É também da direção sensível de Gondry, do timing perfeito de Jim Carrey, contido quando deve ser e expressivo como só ele sabe ser quando é necessário, da vivacidade de Kate Winslet e da seriedade do talentoso elenco coadjuvante. A harmonia desse filme se deve muito à confiança que toda a equipe parece ter depositado na obra de Kauffman, o homem com uma mente cheia de idéias extraordinárias que, mais do que nunca, provou com essa história como algo tão delicado é capaz de te destroçar.

quarta-feira, outubro 12, 2005

Os Irmãos Grimm

Em certo momento de Os Irmãos Grimm (The Brothers Grimm, EUA, 2005), os protagonistas Wilhem (Matt Damon) e Jacob (Heath Ledger), ao se verem no meio de uma situação misteriosa que não sabem como resolver, começam uma discussão. O prático, cínico e realista Will grita para o irmão que aquilo não é uma fábula. E o sonhador Jake responde categoricamente: “então esse não é o seu mundo”. O diálogo resume com perfeição o espírito do longa. Para gostar de Os Irmãos Grim é preciso, em primeiro lugar, se familiarizar com o universo peculiar que o diretor Terry Gilliam criou para esse conto de fadas sombrio. Responsável por filmes tão diversos como os do Monty Phyton, Brazil-O Filme e Os 12 Macacos, seus trabalhos têm em comum o estilo, visualmente marcante. Shrek faz graça com os contos infantis. O filme de Gilliam transforma-os numa história de terror. O visual carregado e incomum causa um impacto inevitável, para o bem ou para o mal. É exagerado, escuro, pesado, muitas vezes nojento e, sim, belíssimo ao seu modo. Alguns cenários são mais teatrais do que cinematográficos. Mas para toda essa excentricidade do diretor há uma desculpa. É fácil perceber que realismo não era uma das maiores intenções de Gilliam nessa fábula à sua maneira.
Por trás do exuberante visual está a trama simples do filme, que se mostra uma aventura romântica divertida, recheada de referências, mas nada complexa. Na Europa do século XVIII, os irmãos Grimm percorrem a Alemanha ocupada por Napoleão Bonaparte ganhando dinheiro de forma escusa. De povoado em povoado, conquistaram fama exterminando bruxas, gigantes e monstros que eles mesmos criavam. Mas a engenhosa estratégia dos irmãos acaba sendo descoberta pelo comando francês e, para escaparem da punição, eles terão que resolver o mistério que envolve uma pequena aldeia, onde meninas começaram a desaparecer sem explicação.
O filme traz um delicioso humor negro, quase sempre inofensivo. É capaz de fazer referência à muitos dos mais famosos contos-de-fadas dos irmãos. À exemplo de Shakespeare Apaixonado, os autores aqui viram personagens de suas próprias histórias. Interessante como o roteiro foi capaz de criar não só esse diálogo entre autores e obras, mas também uma boa conexão das obras entre si. De repente, nesse universo fantástico e apavorante de Irmãos Grimm, a madrasta da Branca de Neve e Rapunzel se tornam uma só personagem. Chapeuzinho-vermelho, João e Maria, Bela Adormecida, Cinderela e tantos outros emprestam elementos para que o roteiro brinque com a imaginação do espectador, inserindo numa trama de aventura típica todas essas referências que os irmãos usariam futuramente em suas célebres histórias e que há séculos fazem parte de qualquer infância.
Heath Ledger e Matt Damon se mostraram ótimas escolhas para os protagonistas. São jovens, trazem bons trabalhos no currículo e se esforçaram bastante nesse filme. Eles dão a essa produção tão carregada de elementos grande parte de sua leveza. Curioso que, a princípio, Damon interpretaria Jake e Leadger, Will. Mas, a pedido dos dois atores, os personagens acabaram sendo trocados. Os Grimm são donos de personalidades que se completam. Will é exageradamente realista. As fantasias que cria com o irmão são para ele uma forma de ganhar a vida apenas. Com Jake é exatamente o contrário. Nada é mais sério do que as histórias que elabora. Foi enganado na infância por um homem que lhe ofereceu feijões mágicos em troca do único bem de sua família: uma vaca (não soa familiar?). Por isso, vive sendo atormentado pelo irmão, cuja incredulidade será abalada ao se depararem com acontecimentos fantásticos que não saberão explicar. Jake acredita de tal forma naquele mundo de sonhos que seu destino acabará se parecendo com o de um verdadeiro príncipe encantado.
Os Irmãos Grimm é uma fábula dark, com visual imponente, movimentos de câmera que causam vertigem e criatividade. Dos personagens principais ao cenário, todo o universo aqui gira em torno da fantasia. Mas nos filmes tudo pode ser absurdo. E como diz a vilã interpretada por Monica Bellucci, a realidade costuma ser mais triste do que a ficção. Por isso, o melhor mesmo é ficar à vontade no mundo estranho de Terry Gilliam, deixar-se envolver e torcer, perante todas as adversidades, pelo “e viveram felizes para sempre.

segunda-feira, outubro 10, 2005

A Feiticeira

A Feiticeira (Bewitched, EUA, 2005) é uma produção confusa. Não que seu enredo, absolutamente simples, traga características para assim classificá-la. Com “confusa” quero dizer que o filme mostra um certo número de erros e acertos que se equilibram na balança e tornam difícil dizer se essa comédia hollywoodiana despretensiosa é eficiente ou não. A fórmula é velha e bem clara: um elenco de astros (dos protagonistas Nicole Kidman e Will Ferrel a coadjuvantes como Shirley MacLaine e Michael Caine), numa premissa bobinha, misturando romance e comédia, para abocanhar o grande público. Isabel Bigelow (Kidman) é uma bruxa boazinha que se muda para a Califórnia em busca de uma existência regular, a contragosto do pai (Caine). Ela quer ser normal e encontrar um homem perdido que precise desesperadamente dela. Acredita ter achado isso em Jack Wyatt (Ferrel), um ator de cinema em decadência convidado para protagonizar o remake de A Feiticeira, o bem-sucedido seriado de TV da década de 60. Envolvida por ele, Isabel aceita representar Samantha, a feiticeira da série. E, ao se sentir enganada por Jack, que queria apenas uma parceira de cena a quem pudesse ofuscar, a bruxinha vai causar uma série de confusões tentando se vingar. Mas essa poção mágica há tempos usada em Hollywood, que se mostrava bastante rentável, parece estar dando sinais de esgotamento e a história da feiticeira que queria ser mortal não teve o êxito de público esperado pelos produtores.
Como a grande maioria dos filmes, esse é feito de prós e contras, que são aqui bem evidentes. Ele é ágil, traz algumas boas tiradas e em geral consegue divertir. A diretora Nora Ephron (Mensagem para você, Bilhete Premiado) acertou ao tentar (e em boa parte conseguir) manter o espírito ingênuo da série, exibida entre 1964 e 1972. Outro ponto positivo é A Feiticeira não ser uma simples refilmagem com menos de duas horas do seriado e, sim, uma obra com diferenças sutis que dialoga de forma divertida com a que lhe inspirou. São claras as cenas que procuram criar uma semelhança entre as duas histórias e mostrar ao público que Isabel e Samantha têm muito - ou tudo - em comum. Nicole Kidman está, sobretudo no início do filme, muito bem, se mostrando uma heroína tão ingênua e simples quanto o filme pede. Papel, aliás, muito diferente dos que a atriz vinha escolhendo ultimamente, já que “simples” era a última palavra possível de ser usada para definir suas personagens mais recentes.
Por outro lado, Will Ferrel, saído há algum tempo do Saturday Nihgt Live para ser o comediante do momento, no papel do exageradíssimo Jack Wyatt está... exageradíssimo. Difícil imaginar como uma mulher em sã consciência, ainda que fosse uma bruxa, se apaixonaria por ele. Entretanto, Ferrel, que já mostrou em filmes como Melinda e Melinda ter bastante talento e carisma, merece ser destituído da culpa. O responsável por transformar Jack Wyatt em um personagem tão desinteressante é, na verdade, o roteiro fraco e equivocado, também de Nora Ephron. Sua atuação lembra muito Jim Carrey, com caras, bocas e trejeitos performáticos. Carrey, inclusive, chegou a ser cogitado para o papel, mas, devido a outros compromissos, não pôde participar do filme. Talvez essa curiosidade possa explicar algo sobre a natureza exagerada de Jack Wyatt. Hollywood, provavelmente tentando aumentar a identificação do público com a produção, achou por bem adaptar a ingenuidade aos tempos modernos, o que acabou tornando a fita um bocado irregular. Defeito agravado pela escorregada que o filme dá no final, caindo na mesmice do melodrama romântico. E ver Steve Carrel (também criação do Saturday Night Live) surgir de repente como tio Arthur, fazendo vir à mente seu outro filme em cartaz – O Virgem de 40 Anos, que ainda me pergunto como conseguiu fazer tamanho sucesso – é um tanto quanto traumatizante.
Na disputa entre erros e acertos, pesa a irregularidade do filme e a sua obediência exagerada a uma fórmula que subestima o espectador. A Feiticeira não pretende ser mais do que diversão à lá sessão da tarde. O tipo de programa para quem quer entrar no cinema, esquecer da vida e não precisar pensar em muita coisa. Vários filmes anteriores a esse já mostraram que isso não é, de forma alguma, algo ruim. Mas o grande problema aqui é que os erros acabaram fatalmente pesando mais na balança. É mesmo uma pena.

quarta-feira, outubro 05, 2005

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain

No mesmo segundo em que uma mosca californiana capaz de 14670 batimentos de asa por segundo pousou numa rua em Montmartre, um espermatozóide de cromossomo X, pertencente ao Sr. Raphael Poulain (Rufus), fecundou o óvulo da Sra. Amandine Poulain (Lorella Cravotta), em solteira Amandine Fouet. Nove meses depois nascia Amélie (vivida na infância por Flore Guiet e mais tarde por Audrey Tatou). O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le Fabuleux Destin d´Amélie Poulain, França, 2001) é, em síntese, a mágica de transformar o cotidiano em poesia, como nas frases acima. Amélie foi uma criança peculiar. Como todas as outras, gostaria de ter o carinho do pai. Mas ele, um ex-médico militar muito frio, só tocava a filha no exame mensal de rotina. A menina, emocionada com o contato tão incomum, não conseguia impedir que seu coração disparasse. Raphael Poulain conclui, então, que a filha sofria de uma grave anomalia cardíaca. Não podendo ir à escola, a garota passa a ter a mãe, extremamente nervosa, como preceptora. Privada do contato com outras crianças, convivendo apenas com um pai distante e uma mãe neurastênica, ela começa a criar um mundo de fantasias no qual se acostumará a viver. Após a trágica morte da esposa, Raphael Poulain torna-se ainda mais fechado e tudo ao redor de Amélie parece tão sem vida que ela não vê outra alternativa além de sonhar até que possa partir. Quando se muda do subúrbio para Paris, torna-se garçonete no café Deux Mullins. Mas, mesmo vivendo em um mundo maior e cheio de pessoas, a jovem nunca deixou seu universo de fantasias, onde não há limites para a sua imaginação.
A vida da heroína e o mundo que a cerca são às vezes melancólicos, mas nunca tristes. A história é contada de forma a parecer que o destino fabuloso da protagonista é possível e só está a sua espera. Isso, devido ao imenso valor que é dado aos pequenos detalhes, tornando momentos banais do cotidiano extremamente intensos. A cada cena se redescobre o segredo de Amélie Poulain: a beleza e poesia com que as coisas corriqueiras são tratadas. A vida aqui, em cada mínimo detalhe, é inevitavelmente fabulosa. A própria narração tem sempre um tom de aventura fantástica, como se algo emocionante, não importa o quão pequeno seja, pudesse acontecer a qualquer momento. Os personagens que povoam o mundo da jovem francesa são apresentados por particularidades mínimas e delicadas, mas que dizem muito. Assim, temos Suzanne (Claire Maurier), a dona do café, que manca um pouco, mas nunca derrubou um copo; Gina (Clotilde Mallet), também garçonete, cuja avó era curandeira; Georgette (Isabelle Nanty), a doente imaginária; Joseph (Dominique Pinon), o amante rejeitado de Gina, louco por plásticos-bolha; Dufayel (Serge Merlyn), o homem de vidro e tantos outros riquíssimos. E, sobretudo, temos Amélie, a garota introspectiva que vive num mundo de sonhos e se apega a pequenos prazeres, como enfiar a mão num saco de grãos, quebrar com a colher a crosta do créme brulée e atirar pedras no Canal Saint Martin. Depois de achar por acaso em seu apartamento uma caixinha escondida há 40 anos por um menino, ela toma uma decisão que mudará o seu destino: vai encontrar o dono daquele tesouro e devolvê-lo. Se ele se emocionar, ela se imiscuirá da vida dos outros. Se não, azar. Na verdade, a vida de Amélie Poulain é vazia e solucionar os problemas à sua volta, com idéias sempre criativas, lhe dá um sentido. Entretanto, nossa heroína perceberá que, sendo apenas o anjo da guarda dos outros, poderá desperdiçar sua própria vida. E, como diz seu amigo Dufayel em certo momento, quem vai arrumar a bagunça da vida dela?
Dirigido por Jean-Pierre Jeunet, de Delicatessen, o filme é uma junção de histórias que ele acumulou durante 25 anos. Dái a riqueza do enredo. A história de Amélie é só uma entre tantas no filme. E há dentro desse vasto universo ficcional alguém muito parecido com a doce protagonista. Nino Quincampoix (Mathieu Kassovitz) foi também uma criança sozinha. Trabalha como caixa no Palace Vídeo, O Rei do Pornô e nas quartas-feiras no trem-fantasma de um parque de diversões. Tem o hábito de colecionar fotos instantâneas de desconhecidos, um estranho álbum de família. Assim como Amélie, é um sonhador. Já no primeiro encontro ela sente que os dois têm algo em comum, mas, sempre introvertida, prefere viver no sonho a encarar a realidade e se arriscar. No entanto, a moça terá que criar coragem e deixar de se privar para não estragar o próprio destino.
O sonho é parte essencial do mundo de Amélie e preenche todo o filme. Fantasia e realidade misturam-se num mundo fantástico. A simplicidade do cotidiano, tornado aqui tão grande, tão bonito e tão capaz de emocionar, nos aproxima da história. E o visual espetacular influi muito nela. Jeunet optou por utilizar cores vribrantes, até mesmo quando a cena é escura. Para compor o trabalho, o diretor e a equipe foram buscar inspiração em pinturas e uma grande influência em Amélie Poulain foi um artista brasileiro, de nome Machado, que utilizava bastante o verde e o vermelho (as cores essenciais da fotografia de Amélie) em suas obras. Mas a variedade era importante e, para equilibrar o excesso dessas duas cores, há sempre em algum lugar do quadro uma outra, como o amarelo e o azul, que aparece pontualmente em várias cenas.
Amélie Poulain foi preparado com um apuro extremado. Depois de filmar Alien – A Ressurreição, Jean-Pierre Jeunet queria voltar à França e fazer o filme que tivesse vontade. Se dedicou muito à pré-produção, usando storyboards e definindo previamente cada tomada, cada manuseio da câmera. Um cuidado que mostrou resultados, pois os movimentos de câmera são impressionantes, mas não excessivos, garantindo ao filme o ritmo certo. Foi grande também a preocupação com os cenários, os desenhos de produção e a escolha das locações. A história se passa em Montmartre, que é uma colina. São mostrados elementos específicos dali, mas as locações também dão uma boa amostra de Paris, trazendo mais realidade ao filme.
Para o papel principal, Jeunet havia pensado inicialmente na inglesa Emily Watson, de Ondas do Destino, que por motivos pessoais não pôde ficar com o papel. No teste de elenco na França, a primeira atriz que conheceu foi Audrey Tautou. Um feliz encontro, pois ela encarnou a heroína com perfeição. Difícil falar em Amélie Poulain sem que nos venha a mente os já antológicos close-ups do rosto de Audrey, com seu olhar e sorriso peculiares. A princípio, o título do filme seria Amélie das Abesses, uma praça de Paris. O título verdadeiramente escolhido foi encontrado em um catálogo de filmes antigos, a partir de uma obra de Sacha Guitry intitulada O Fabuloso Destino de Desirée. Nas palavras do diretor, no fim seu filme teve um fabulos destino e o título pelo qual optaram foi meio premonitório. É, há uma infinidade de histórias a serem contadas sobre Amélie Poulain. Mas uma única, recorrente e inevitável palavra já define com perfeição essa deliciosa obra francesa: fabulosa!

terça-feira, outubro 04, 2005

Seabiscuit - Alma de Herói

Seabiscuit é mesmo um azarão. Não só o cavalo do título, mas o filme em si. Alma de herói (Seabiscuit, EUA, 2003) tem um je ne sais quois que o tornou mais aclamado do que se imaginava. A história do cavalo de corridas subestimado pelo pequeno porte e pela indisciplina, ambientada nos anos da grande depressão, é um melodrama norte-americano típico. Não é inovador, mas tem uma doçura que soube encantar o público. Talvez o mistério de Seabiscuit seja o elenco em ótima forma e harmonia. Talvez sejam as belas cenas que valorizam o texto preciso, mas nada surpreendente. Talvez todo o conjunto da obra – direção de arte, figurino, fotografia, atuações, montagem, trilha e direção – tenha conseguido um resultado que fez desse filme algo maior do que o esperado. A história, verídica, gira em torno de quatro personagens muito diferentes, cujas trajetórias de ganhos e perdas estão ligadas à conjuntura do país. Charles Howard (Jeff Bridges) passou de um humilde mecânico de bicicletas a um bem sucedido industrial do ramo automobilístico devido ao bom tino para os negócios e ao superconsumo de automóveis ocorrido antes do crack da bolsa de Nova York. Durante a época da depressão, perde o filho em um acidente de carro (por ironia) e logo depois é abandonado pela esposa, que o culpava pela fatalidade. Red Pollard (Tobey Maguire) é um jóquei grande demais para a profissão, abandonado pelos pais que perderam tudo durante a depressão. Dono de uma personalidade forte, costuma se envolver em brigas, que nunca vence, para ganhar dinheiro. Tom Smith (Chris Cooper) é um hábil domador de cavalos que perde espaço com a acelerada difusão dos automóveis trazida pela modernidade. Esses três homens marcados vão se ligar em torno de outra vida aparentemente perdida: a de Seabiscuit, um animal já tão desacreditado que desaprendeu a ser um cavalo.
O diretor Gary Ross, de A Vida em Preto e Branco, conduziu essa produção com traços semelhantes aos de seu filme anterior. Apesar de não ter a premissa fantasiosa daquele e de ser bem claro, quase não guardando idéias nas entrelinhas, Seabiscuit mantém o tom leve e fabuloso. A narração é um bom exemplo disso. A história é tratada como um conto - limitada a certos personagens e ao que lhes acontece, mas sempre fazendo alusão a algo maior (o período histórico norte-americano) – o que garante a impressão de estarmos assistindo a uma espécie de fábula. E a moral da história é definida por uma fala do personagem de Jeff Bridges: “não se descarta uma vida só por causa de uma lesão”. O que acontece com cada um dos protagonistas do filme, baseado no livro de Laura Hillenbrand, é dar a si mesmos e aos demais uma nova chance. Todos esses personagens (assim como a maioria do povo americano naquele momento) são criaturas marcadas por lesões. Quando Charles ganha Seabiscuit e contrata Tom como treinador, eles descobrem no cavalo um potencial surpreendente. Para montar um animal de temperamento tão agressivo, seria necessário um jóquei que soubesse lidar com ele. Então, depois de uma metáfora visual que identifica claramente a personalidade de Seabiscuit com a do explosivo Red, o rapaz se junta ao grupo. Tem-se aí uma combinação das mais absurdas: um cavalo pequeno demais e um jóquei maior do que o normal, que inusitadamente vão ganhar fama e notoriedade nas corridas de cavalo de quase todo o país em 1938. Os personagens, na verdade, se complementam e preenchem faltas existentes na vida de cada um. E o que leva esses homens a apostarem tanto em Seabiscuit é a circunstância em que se encontram: nenhum deles têm mais nada a perder. Mas por ser essencialmente tão dramático, o filme cai por vezes em certas obviedades do melodrama. Nada que atrapalhe seu bom andamento, entretanto.
Apesar de não ter muita ação, ou grandes reviravoltas, Seabiscuit mostra um bom ritmo, favorecido pelas ótimas conexões entre as cenas. Para ligar a história do filme ao contexto norte-americano da depressão, no final de determinados planos os personagens fictícios são mostrados em poses semelhantes às das fotos reais da época, que seguem esses planos. A trilha sonora ajuda na impecável reconstituição de época, assim como as cenas das transmissões de rádio. Entra aí outro fator que faz a diferença no filme: William H. Macy, impagável no papel do locutor Tick Tock McGlaughlin, pelo qual foi indicado ao globo de ouro de melhor ator coadjuvante. É difícil dizer ao certo o que fez de Seabiscuit o grande azarão do Oscar em 2004, recebendo sete indicaões, inclusive a de melhor filme. O que sobra nesse drama verídico de Gary Ross é beleza, suavidade e capacidade de envolver. Talvez o segredo do sucesso tenha sido mesmo a sua falta de pretensão. O fato é que, assim como o pequeno cavalo do título, esse filme realizou algo melhor do que o esperado.
Nota: Vale a pena conferir o making off das gravações no dvd.