quarta-feira, outubro 05, 2005

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain

No mesmo segundo em que uma mosca californiana capaz de 14670 batimentos de asa por segundo pousou numa rua em Montmartre, um espermatozóide de cromossomo X, pertencente ao Sr. Raphael Poulain (Rufus), fecundou o óvulo da Sra. Amandine Poulain (Lorella Cravotta), em solteira Amandine Fouet. Nove meses depois nascia Amélie (vivida na infância por Flore Guiet e mais tarde por Audrey Tatou). O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le Fabuleux Destin d´Amélie Poulain, França, 2001) é, em síntese, a mágica de transformar o cotidiano em poesia, como nas frases acima. Amélie foi uma criança peculiar. Como todas as outras, gostaria de ter o carinho do pai. Mas ele, um ex-médico militar muito frio, só tocava a filha no exame mensal de rotina. A menina, emocionada com o contato tão incomum, não conseguia impedir que seu coração disparasse. Raphael Poulain conclui, então, que a filha sofria de uma grave anomalia cardíaca. Não podendo ir à escola, a garota passa a ter a mãe, extremamente nervosa, como preceptora. Privada do contato com outras crianças, convivendo apenas com um pai distante e uma mãe neurastênica, ela começa a criar um mundo de fantasias no qual se acostumará a viver. Após a trágica morte da esposa, Raphael Poulain torna-se ainda mais fechado e tudo ao redor de Amélie parece tão sem vida que ela não vê outra alternativa além de sonhar até que possa partir. Quando se muda do subúrbio para Paris, torna-se garçonete no café Deux Mullins. Mas, mesmo vivendo em um mundo maior e cheio de pessoas, a jovem nunca deixou seu universo de fantasias, onde não há limites para a sua imaginação.
A vida da heroína e o mundo que a cerca são às vezes melancólicos, mas nunca tristes. A história é contada de forma a parecer que o destino fabuloso da protagonista é possível e só está a sua espera. Isso, devido ao imenso valor que é dado aos pequenos detalhes, tornando momentos banais do cotidiano extremamente intensos. A cada cena se redescobre o segredo de Amélie Poulain: a beleza e poesia com que as coisas corriqueiras são tratadas. A vida aqui, em cada mínimo detalhe, é inevitavelmente fabulosa. A própria narração tem sempre um tom de aventura fantástica, como se algo emocionante, não importa o quão pequeno seja, pudesse acontecer a qualquer momento. Os personagens que povoam o mundo da jovem francesa são apresentados por particularidades mínimas e delicadas, mas que dizem muito. Assim, temos Suzanne (Claire Maurier), a dona do café, que manca um pouco, mas nunca derrubou um copo; Gina (Clotilde Mallet), também garçonete, cuja avó era curandeira; Georgette (Isabelle Nanty), a doente imaginária; Joseph (Dominique Pinon), o amante rejeitado de Gina, louco por plásticos-bolha; Dufayel (Serge Merlyn), o homem de vidro e tantos outros riquíssimos. E, sobretudo, temos Amélie, a garota introspectiva que vive num mundo de sonhos e se apega a pequenos prazeres, como enfiar a mão num saco de grãos, quebrar com a colher a crosta do créme brulée e atirar pedras no Canal Saint Martin. Depois de achar por acaso em seu apartamento uma caixinha escondida há 40 anos por um menino, ela toma uma decisão que mudará o seu destino: vai encontrar o dono daquele tesouro e devolvê-lo. Se ele se emocionar, ela se imiscuirá da vida dos outros. Se não, azar. Na verdade, a vida de Amélie Poulain é vazia e solucionar os problemas à sua volta, com idéias sempre criativas, lhe dá um sentido. Entretanto, nossa heroína perceberá que, sendo apenas o anjo da guarda dos outros, poderá desperdiçar sua própria vida. E, como diz seu amigo Dufayel em certo momento, quem vai arrumar a bagunça da vida dela?
Dirigido por Jean-Pierre Jeunet, de Delicatessen, o filme é uma junção de histórias que ele acumulou durante 25 anos. Dái a riqueza do enredo. A história de Amélie é só uma entre tantas no filme. E há dentro desse vasto universo ficcional alguém muito parecido com a doce protagonista. Nino Quincampoix (Mathieu Kassovitz) foi também uma criança sozinha. Trabalha como caixa no Palace Vídeo, O Rei do Pornô e nas quartas-feiras no trem-fantasma de um parque de diversões. Tem o hábito de colecionar fotos instantâneas de desconhecidos, um estranho álbum de família. Assim como Amélie, é um sonhador. Já no primeiro encontro ela sente que os dois têm algo em comum, mas, sempre introvertida, prefere viver no sonho a encarar a realidade e se arriscar. No entanto, a moça terá que criar coragem e deixar de se privar para não estragar o próprio destino.
O sonho é parte essencial do mundo de Amélie e preenche todo o filme. Fantasia e realidade misturam-se num mundo fantástico. A simplicidade do cotidiano, tornado aqui tão grande, tão bonito e tão capaz de emocionar, nos aproxima da história. E o visual espetacular influi muito nela. Jeunet optou por utilizar cores vribrantes, até mesmo quando a cena é escura. Para compor o trabalho, o diretor e a equipe foram buscar inspiração em pinturas e uma grande influência em Amélie Poulain foi um artista brasileiro, de nome Machado, que utilizava bastante o verde e o vermelho (as cores essenciais da fotografia de Amélie) em suas obras. Mas a variedade era importante e, para equilibrar o excesso dessas duas cores, há sempre em algum lugar do quadro uma outra, como o amarelo e o azul, que aparece pontualmente em várias cenas.
Amélie Poulain foi preparado com um apuro extremado. Depois de filmar Alien – A Ressurreição, Jean-Pierre Jeunet queria voltar à França e fazer o filme que tivesse vontade. Se dedicou muito à pré-produção, usando storyboards e definindo previamente cada tomada, cada manuseio da câmera. Um cuidado que mostrou resultados, pois os movimentos de câmera são impressionantes, mas não excessivos, garantindo ao filme o ritmo certo. Foi grande também a preocupação com os cenários, os desenhos de produção e a escolha das locações. A história se passa em Montmartre, que é uma colina. São mostrados elementos específicos dali, mas as locações também dão uma boa amostra de Paris, trazendo mais realidade ao filme.
Para o papel principal, Jeunet havia pensado inicialmente na inglesa Emily Watson, de Ondas do Destino, que por motivos pessoais não pôde ficar com o papel. No teste de elenco na França, a primeira atriz que conheceu foi Audrey Tautou. Um feliz encontro, pois ela encarnou a heroína com perfeição. Difícil falar em Amélie Poulain sem que nos venha a mente os já antológicos close-ups do rosto de Audrey, com seu olhar e sorriso peculiares. A princípio, o título do filme seria Amélie das Abesses, uma praça de Paris. O título verdadeiramente escolhido foi encontrado em um catálogo de filmes antigos, a partir de uma obra de Sacha Guitry intitulada O Fabuloso Destino de Desirée. Nas palavras do diretor, no fim seu filme teve um fabulos destino e o título pelo qual optaram foi meio premonitório. É, há uma infinidade de histórias a serem contadas sobre Amélie Poulain. Mas uma única, recorrente e inevitável palavra já define com perfeição essa deliciosa obra francesa: fabulosa!

1 Comentários:

Às 5:35 PM , Anonymous Anônimo disse...

Adorei o texto.

 

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