terça-feira, outubro 04, 2005

Seabiscuit - Alma de Herói

Seabiscuit é mesmo um azarão. Não só o cavalo do título, mas o filme em si. Alma de herói (Seabiscuit, EUA, 2003) tem um je ne sais quois que o tornou mais aclamado do que se imaginava. A história do cavalo de corridas subestimado pelo pequeno porte e pela indisciplina, ambientada nos anos da grande depressão, é um melodrama norte-americano típico. Não é inovador, mas tem uma doçura que soube encantar o público. Talvez o mistério de Seabiscuit seja o elenco em ótima forma e harmonia. Talvez sejam as belas cenas que valorizam o texto preciso, mas nada surpreendente. Talvez todo o conjunto da obra – direção de arte, figurino, fotografia, atuações, montagem, trilha e direção – tenha conseguido um resultado que fez desse filme algo maior do que o esperado. A história, verídica, gira em torno de quatro personagens muito diferentes, cujas trajetórias de ganhos e perdas estão ligadas à conjuntura do país. Charles Howard (Jeff Bridges) passou de um humilde mecânico de bicicletas a um bem sucedido industrial do ramo automobilístico devido ao bom tino para os negócios e ao superconsumo de automóveis ocorrido antes do crack da bolsa de Nova York. Durante a época da depressão, perde o filho em um acidente de carro (por ironia) e logo depois é abandonado pela esposa, que o culpava pela fatalidade. Red Pollard (Tobey Maguire) é um jóquei grande demais para a profissão, abandonado pelos pais que perderam tudo durante a depressão. Dono de uma personalidade forte, costuma se envolver em brigas, que nunca vence, para ganhar dinheiro. Tom Smith (Chris Cooper) é um hábil domador de cavalos que perde espaço com a acelerada difusão dos automóveis trazida pela modernidade. Esses três homens marcados vão se ligar em torno de outra vida aparentemente perdida: a de Seabiscuit, um animal já tão desacreditado que desaprendeu a ser um cavalo.
O diretor Gary Ross, de A Vida em Preto e Branco, conduziu essa produção com traços semelhantes aos de seu filme anterior. Apesar de não ter a premissa fantasiosa daquele e de ser bem claro, quase não guardando idéias nas entrelinhas, Seabiscuit mantém o tom leve e fabuloso. A narração é um bom exemplo disso. A história é tratada como um conto - limitada a certos personagens e ao que lhes acontece, mas sempre fazendo alusão a algo maior (o período histórico norte-americano) – o que garante a impressão de estarmos assistindo a uma espécie de fábula. E a moral da história é definida por uma fala do personagem de Jeff Bridges: “não se descarta uma vida só por causa de uma lesão”. O que acontece com cada um dos protagonistas do filme, baseado no livro de Laura Hillenbrand, é dar a si mesmos e aos demais uma nova chance. Todos esses personagens (assim como a maioria do povo americano naquele momento) são criaturas marcadas por lesões. Quando Charles ganha Seabiscuit e contrata Tom como treinador, eles descobrem no cavalo um potencial surpreendente. Para montar um animal de temperamento tão agressivo, seria necessário um jóquei que soubesse lidar com ele. Então, depois de uma metáfora visual que identifica claramente a personalidade de Seabiscuit com a do explosivo Red, o rapaz se junta ao grupo. Tem-se aí uma combinação das mais absurdas: um cavalo pequeno demais e um jóquei maior do que o normal, que inusitadamente vão ganhar fama e notoriedade nas corridas de cavalo de quase todo o país em 1938. Os personagens, na verdade, se complementam e preenchem faltas existentes na vida de cada um. E o que leva esses homens a apostarem tanto em Seabiscuit é a circunstância em que se encontram: nenhum deles têm mais nada a perder. Mas por ser essencialmente tão dramático, o filme cai por vezes em certas obviedades do melodrama. Nada que atrapalhe seu bom andamento, entretanto.
Apesar de não ter muita ação, ou grandes reviravoltas, Seabiscuit mostra um bom ritmo, favorecido pelas ótimas conexões entre as cenas. Para ligar a história do filme ao contexto norte-americano da depressão, no final de determinados planos os personagens fictícios são mostrados em poses semelhantes às das fotos reais da época, que seguem esses planos. A trilha sonora ajuda na impecável reconstituição de época, assim como as cenas das transmissões de rádio. Entra aí outro fator que faz a diferença no filme: William H. Macy, impagável no papel do locutor Tick Tock McGlaughlin, pelo qual foi indicado ao globo de ouro de melhor ator coadjuvante. É difícil dizer ao certo o que fez de Seabiscuit o grande azarão do Oscar em 2004, recebendo sete indicaões, inclusive a de melhor filme. O que sobra nesse drama verídico de Gary Ross é beleza, suavidade e capacidade de envolver. Talvez o segredo do sucesso tenha sido mesmo a sua falta de pretensão. O fato é que, assim como o pequeno cavalo do título, esse filme realizou algo melhor do que o esperado.
Nota: Vale a pena conferir o making off das gravações no dvd.

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