quarta-feira, outubro 26, 2005

O de sempre

Ela tirou os olhos do prato e olhou pra ele. “Cinco anos”, pensava. Há cinco anos atrás as coisas eram diferentes. Mas depois de tantos dias, tantos meses, tantos anos juntos, certas coisas passaram a ser orgânicas. O cinema da sexta a noite. Não importava mais que filme era. O futebol de domingo na televisão. Ela já nem se dava conta de que nunca gostou de futebol. A visita aos pais de quinze em quinze dias. Aquele silêncio tão comum parecia-lhe agora constrangedor. Os dois com os olhos no prato, distantes em seus pensamentos. Aquilo não parecia uma comemoração. De repente ela se deu conta de que há muito todas as comemorações eram assim. Sem surpresas, sem entusiasmo. “Será, meu Deus, que nos tornamos um daqueles casais de quem sempre tive pena?”. Ela pensava.
Ele não pensava. Com os olhos no prato, comia a refeição sem reparar no sabor. Não gostava de pensar. Não naquilo. Pensar pra que? Os dois já haviam se acostumado. Pensar se tornou um trabalho desnecessário. Uma ameaça à estabilidade. Mas por um momento ele lembrou do tempo em que a estabilidade não existia. Havia paixão. Havia algo que ele não sabia definir, mas que há muito já não sentia. Estranho lembrar assim de um tempo que lhe parecia tão longe.
“Será, meu Deus, que somos mais um daqueles casais sem vida?”. Ela pensava. Será que depois de tanto tempo eles haviam esquecido o porque de estarem juntos? Comodismo talvez. Tinham afinidades. Quase não brigavam. Parecia um bom sinal. Será que aqueles dois tinham recebido a sorte de um amor tranqüilo? “Será que eu quero esse amor tranqüilo?”. Ela pensava. E tinha medo de saber a reposta. Medo de descobrir que o que ela queria mesmo era sentir o sangue circulando nas veias novamente. Os olhos se encheram de lágrimas e ela voltou a olhar para o prato.
Ele ainda olhava para o prato. Não tinha vontade de erguer seus olhos e encontrar os dela. Era preciso dizer alguma coisa. Qualquer coisa. Mas ele não tinha nada a dizer. “Por que a cada dia que passa temos menos a nos dizer?”. Ele pensava. E tentou não pensar. Por que de repente não conseguia parar de pensar? Ele não costumava pensar. Não naquilo. Pensar pra que? Os dois já haviam se acostumado. Pensar se tornou um trabalho desnecessário.
Ela mantinha os olhos no prato ainda cheio. Aquele nó na garganta não deixava a comida descer. Ele não percebeu que ela segurava o choro. Se não segurasse, seria um pranto de horas. Aquilo não parecia uma comemoração. De repente ela se deu conta de que há muito todas as comemorações eram tristes. E de que os dias eram tristes. Teve vontade de gritar e sair correndo daquele restaurante. Correr pra longe dele. Por que não se mudava pra algum lugar bem longe? Longe o suficiente pra deixar aquele nó na garganta perdido no meio da estrada. “Rio de Janeiro, talvez”. Ela pensava. Lá era bonito. Ela poderia freqüentar a praia e ter uma cor de pele diferente daquele amarelo mofado de quem não saia do escritório. “Será que nós também estamos mofados?”. Ela pensava. E teve vontade de gritar e de correr.
Ele não queria mais pensar no quanto pensar havia se tornado um trabalho desnecessário. Aquele silêncio de vinte minutos parecia ter durado a vida toda. Ele olhou para o prato dela, ainda cheio. E percebeu que ela estava segurando o choro. “Chorar por que, meu Deus?”. Ele pensava. E começou a achar que aquilo não parecia uma comemoração. E que todas as comemorações haviam se tornado tristes assim. Parou de comer a refeição sem sabor porque o nó que surgiu na garganta não deixava a comida descer. O que poderia ser feito? Acabar com tudo? Deixá-la livre? Fugir pra algum lugar bem longe? “Não!”. Ele pensava. Não podia. Por que não podia viver sem ela? Há cinco anos atrás as coisas eram diferentes. Mas talvez ele ainda a amasse. Há muito tempo não pensava sobre isso.
Ela teve vontade de gritar e correr. Mas não o fez. “E por que não?”, pensava. Por que não sabia viver sem ele? Depois daqueles cinco anos talvez ela ainda o amasse. Há muito tempo não pensava em outra coisa. Não estava feliz. Seria feliz sem ele? Ela não queria mais pensar. Não naquilo. Pensar pra que? Os dois já haviam se acostumado.
Ela tirou os olhos do prato ainda cheio e se deu conta de que os olhos dele olhavam pra ela. E a voz dele ainda tímida quebrou aquele silêncio de vinte minutos que parecia ter durado a vida toda. “Mais vinho?”. Ele perguntou. “Ou vai ser outra coisa?”. Ela deu um sorriso triste e respondeu sem entusiasmo. “O de sempre”. E depois de fazerem o pedido de sempre ao garçom de sempre, os dois se olharam por um segundo antes de voltarem os olhos para os pratos de sempre. Não queriam mais pensar. Não naquilo. Pensar pra que? Os dois já haviam se acostumado.

2 Comentários:

Às 3:52 PM , Blogger Cfelicori disse...

achei lindo isa!

o de sempre... por que será que nos acostumamos tanto a nos acostumarmos a tantas ausências?

 
Às 3:37 PM , Blogger Isabella Goulart disse...

Eu tenho me perguntado isso ultimamente Cacá... Pq às vezes a gente se acostuma, ou até sentimos falta de algo que talvez nem seja bom, mas ao qual estamos acostumados? Não devíamos...

 

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