quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Boa Noite e Boa Sorte


Era uma vez na América um sujeito bonitão e extremamente charmoso. Clooney, George Clooney era seu nome. Começou a vida de estrela arrebatando corações na TV e, como bom galã que era, não demorou a se lançar no cinema. O que o mundo ainda não sabia é que aquele rostinho bonito encobria um espírito subversivo e foi se tornando claro que o sujeito queria mais e mais da vida. Foi caminhando aos poucos. Lançou-se na aventura de produzir o remake de Onze Homens e Um Segredo (experiência tão bem sucedida que impulsionou uma continuação) e deu os primeiros passos na direção em Confissões de Uma Mente Perigosa, com o roteiro de Charlie Kauffman. Ganhando credibilidade aos poucos e se aproveitando estrategicamente da condição de estrela, George imaginou que estava na hora de tomar medidas mais drásticas. Então, numa cartada brilhante, achou por bem cutucar passado e presente norte-americanos com seu fantástico Boa Noite e Boa Sorte (Good Night and Good Luck, Estados Unidos, 2005).
Clooney lançou mão de seu fascínio pelo jornalismo investigativo de opinião, vestiu seu filme de preto e branco e reuniu um time de atores de primeira para voltar aos anos 50 e remontar a luta de Edward Murrow, o mais importante dos âncoras da CBS, contra o senador Joseph McCarty, famoso pela “caça às bruxas” que empreendeu em direção à suspeitos de atividades comunistas com o fim da Segunda Guerra. Depois dos concisos 93 minutos que duram a projeção fica fácil entender porque o astro merece o respeito de que goza no momento. São raros no cinema aqueles que têm o dom de incomodar com habilidade e elegância. E polemizar em Boa Noite e Boa Sorte é uma questão de arte. Não satisfeito em ir contra a direita política, ele ludibria também certos costumes narrativos a que nossos olhos estão acostumados, realizando mudanças de foco de um plano para outro. O senador McCarty aparece em cenas de arquivo, por via de uma montagem competente, e as imagens fictícias têm a mesma qualidade das imagens reais da época. Essa semelhança cria um aspecto homogêneo, deixando o que é visto na tela mais fluido e uniforme. Ou seja, as imagnes reais e fictícias não destoam muito entre si. O herói Edward Murrow é interpretado por David Strathairn, que arrematou indicações à uma série de prêmios pela atuação sóbria e tensa. Mas o "herói" aqui ganha um espaço peculiar. O roteiro de Clooney - que também atua no filme - baseado em um texto anterior de Grant Heslov, não desenvolve a vida pessoal do protagonista ou de nenhum dos personagens (sua imersão na privacidade do casal vivido por Robert Downey Jr. e Patricia Clarkson não vai além de um mínimo necessário), concentrando a trama no ambiente de trabalho da rede de televisão. Focalizando os holofotes no conflito discursivo entre McCarty e Murrow, o filme é dinâmico e não se interessa em apelar para uma identificação do público com personagens que tenham sua personalidade esmiuçada.
O cuidado com a reconstituição do momento histórico é primoroso. Figurino, fotografia, cenografia, trilha sonora foram elaborados com esmero e o filme edifica um ambiente de época impecável. Na década de 1950 a televisão estava surgindo e testemunhava seu auge enquanto o rádio ficava para trás. As canções que de tempo em tempo embalam a trama garantem charme e nostalgia. O longa é verborrágico, mas sabe quando e o que dizer. A crítica à mídia como um entretenimento vazio, um objeto de alienação que explorava espetáculos fúteis, remetendo à velha idéia de panis et circus para evitar que o espectador pense demais, é clara. E o que mais incomoda é ter consciência de que essa perspectiva ainda não mudou. As analogias à postura norte-americana contemporânea também são nítidas: uma “democracia” que se vale de meios erroneos para justificar seus fins e manter à todo custo a estabilidade da “vida americana”, pulverizando os antígenos daquela sociedade.
Acompanhando a luta corajosa de Murrow para mostrar em rede nacional a falta de coerência do macarthismo, entramos no campo da necessidade de liberdade de expressão. E testemunhamos também o imenso poder da imprensa. Afinal, tudo é edição. Os meios de comunicação não têm apenas uma grande força, mas também uma enorme responsabilidade. A mídia pode e deve ser usada para defender causas justas. Mas e se, como indaga o personagem de Robert Downey Jr., eles não estiverem defendendo o lado certo da questão? Nada tem um poder tão grande de influenciar e manipular mentes quanto a mídia. Por isso, antes de concordar ou discordar com qualquer idéia que nos é transmitida, é preciso desenvolver uma consciência crítica. Por mais que se busque uma postura democrática dentro de qualquer meio de comunicação, sua engrenagem é movida inevitavelmente pela escolha de informações: daquilo que merece virar notícia, de como ela deve ser abordada, da posição que será tomada frente à ela. É uma questão ética delicada e perigosa. Ouso dizer que, pelas discussões que levanta, Boa Noite e Boa Sorte poderá ser um dia considerada uma obra tão obrigatória para a formação de um comunicólogo quanto é hoje Cidadão Kane - repito, pelo tema que engloba e não, de forma alguma, por revolucionar a maneira de fazer cinema. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
George Clooney voltou ao passado para nos trazer o presente. E já recebeu o ultimato de uma produtora: se continuar insistindo em colocar seus filmes no mercado não será mais contratado. Pior para Hollywood e seu senso comum de cinema, melhor para o público, que ganha estilo e qualidade. Sem medo de cair na retórica, peço encarecidamente que alguém lembre Steven Spielberg que para causar polêmica com jeito não é necessário um orçamento absurdo, cenas complicadas e muitas explosões. Um grande espetáculo incomoda muita gente, mas inteligência e classe incomodam muito mais.

5 Comentários:

Às 6:05 PM , Anonymous Anônimo disse...

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Às 6:54 PM , Anonymous Anônimo disse...

"Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa." é a melhor frase. Sacanagem, fico bem legal. mas parece q vc ta dizendo q o spielberg só sabe incomodar fazendo explosão e catástrofe, mas eu n acho, só acho q é o estilo do cara e não falta de habilidade. mas vc ta escrevendo muito(n na critica, mas nos trabalhos) eu acho q o curso de direito te fez mal... hehehe

 
Às 6:55 PM , Anonymous Anônimo disse...

opa era meu nome artistico na escola, so prara se n reconhecesse
juan Peterson=João pedro

 
Às 7:08 PM , Blogger Isabella Goulart disse...

Já aprendi a te reconhecer David! Mesmo com aquela máscara na cara! =D

Olha, lá vamos nós entrar no caso do Spielberg de novo... aff! Eu acho que ele tentou incomodar em Munique, com explosões e espetáculo sim. Aliás, nunca neguei que ele é bom em explodir as coisas. O tema de Munique é diferente do de Boa Noite e Boa Sorte, mas os dois se pretendem polêmicos. Por isso não consegui não fazer uma associação na minha cabeça, já que ambos estão concorrendo ao oscar de melhor filme. E sabe como é né, se eu vejo uma brecha pra sacanear o Spielberg, não perco! Mas vcs, Joãos, nunca vão concordar comigo. É uma discussão tão infindável qto tentar explicar pro Felipe que o Oscar é político...

 
Às 7:40 PM , Blogger Isabella Goulart disse...

Outra coisa: "alguém lembre a Steven Spielberg". Quer dizer, ele já soube mexer em assuntos graves com inteligência e qualidade. Mas ultimamente parece que entrou em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças e pediu pra apagarem de sua mente todas as referências que o faziam ser um cineasta original e destacável. É triste, mas é fato.

 

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