
Insistir em levar às telas um roteiro perigoso que vinha sendo sumariamente recusado por produtores desde o fim da década de 90 não é lá uma idéia das mais sensatas. Apostar em dois atores jovens, bonitinhos e adorados por adolescentes frenéticas para interpretar cowboys americanos – um dos mais fortes arquétipos da virilidade masculina – que vivem um intenso caso de amor por vinte anos, seria então insanidade declarada. Mas foi assim que
O Segredo de Brokeback Mountain (
Brokeback Mountain, Estados Unidos, 2005) levou milhares de espectadores aos cinemas para mostrar que coragem não faz mal à indústria e que o amor não precisa ser clichê para soar universal. Esse é um filme peculiar. Não por ser inusitado ao extremo, mas por trabalhar sua premissa com uma sensibilidade aguçada, respeitando os sentimentos que ela envolve sem se preocupar em rotulá-los. Um romance único, diferente dos que estamos acostumados a ver, com um poder de comoção absurdo, quase inexplicável. E de uma idéia que tratada de outra maneira poderia fazer barulho demais, gritando em nome de uma causa e remetendo à facilidade das apologias, somos agraciados com o silêncio e com a suavidade de murmúrios.
Brokeback Mountain não é um filme gay. Seria medíocre demais reduzir uma obra tão densa a isso. “Estamos apenas contando uma história de amor, sem adjetivos”, foi o que disse Heath Leadger, um dos protagonistas da trama. E não haveria definição melhor. O que vemos narrado aqui é essencialmente um amor impossível, pouco importa se gay, hétero ou simpatizante. Jack Twist (Jake Gyllenhaal) e Ennis Del Mar (Leadger) se conhecem no verão de 1963, quando tornam-se pastores de ovelhas na montanha Brokeback. No isolamento daquele lugar nasce uma paixão incontrolável. Com o fim do trabalho, Ennis e Jack se separam e seguem caminhos distantes. O primeiro, já de casamento marcado, constrói uma vida acomodada com a esposa Alma (Michelle Williams, que fez por merecer suas indicações à atriz coadjuvante), enquanto o segundo se casa com uma rica moça texana (Anne Hathaway). Quatro anos mais tarde eles voltam a se encontrar, retomando o relacionamento que nunca esqueceram.
Essa não é uma história de fácil absorção. O amor que testemunhamos exala uma intensidade que pode levar tempo para ser digerida. E o filme escancara o preconceito dentro da sala de cinema: nas duas sessões a que assisti, risadas nervosas que mostravam o incômodo causado pela falta de costume com o que estava sendo mostrado na tela - o que, no mundo de hoje, chega a ser um absurdo digno de dó - quebravam o silêncio das lindas cenas da projeção. Aos “espirituosos” de plantão, fica a dica: na próxima, abandonem o recinto a tempo e se refugiem na sessão de Vovó zona 2 ao lado. O filme não procura agredir ou chocar o público para abrir a polêmica que ronda sua premissa. Essa seria uma saída fácil. A relação entre Jack e Ennis é difícil de ser definida. É necessária, vital, delicada e agressiva ao mesmo tempo. É bonito ver aqueles homens tão másculos – sim, eles o são – nos momentos de carinho (e os enquadramentos são grandes responsáveis por isso, mérito não só do diretor Ang Lee, mas também da fotografia). E angustiante vê-los em momentos brutos impulsionados pelos sentimentos incontroláveis com os quais ainda não sabem lidar. Tão angustiante quanto é para eles. Love is a force of nature, diz o emblema do filme. É assim a paixão dos dois cowboys: não se pode evitar. E permanece intensa, incapaz de ser controlada, à margem de todo o resto da vida real. Prazer e sofrimento convivem em um amor difícil, cada vez mais insustentável, mas ainda essencial. A rotina é levada por carinho fraternal, conveniência ou por uma obrigação de tocar a vida da maneira esperada. Ennis, com a criação grosseira e rude que teve, é um homofóbico. Ao contrário de Jack, que quer a todo custo assumir o relacionamento, ele não aceita o que sente, impondo a si mesmo uma vida solitária de punição como preço a ser pago por não evitar aquilo.
O contraponto entre as personalidades dos dois é fundamental e os atores conseguiram desenvolve-lo muitíssimo bem. Num filme que se apóia tanto nos olhares – e, mais ainda, em quando eles são evitados - nos longos silêncios, naquilo que não é dito por palavras, mas pelas menores sutilezas da ação, os protagonistas tornam-se a alma da história. E embora eu não ache que sejam eles os únicos e nem os maiores responsáveis pelo que ela consegue nos causar, ambos estão extremamente competentes nos papéis. Jake Gyllenhaal é perfeito nos olhares, nas expressões, nos pequenos gestos. Heath Leadger se apropria com segurança de um personagem bastante complexo. Corajosos, concentrados, dedicados, mostram que têm talento e só por aceitarem participar de um projeto com essa ousadia já merecem crédito. As atuações valorosas renderam indicações ao Oscar – e a vários outros prêmios – numa dessas pegadinhas que colocou Jake para concorrer como coadjuvante e Leadger como ator principal, embora ambos tenham a mesma importância na trama. A cena em que Jack acusa Ennis por nunca ter-lhe dado o que precisava é de arrasar (como tantas outras). Sem música ou qualquer ruído em cena que não a voz dos atores, nem mesmo o som ambiente, com movimentos de câmera que se restringem aos cortes de montagem e mudanças de enquadramento, tem uma força imensa. No fim da discussão há uma breve volta ao passado e revemos os dois em seu primeiro encontro na montanha, quando ainda ignoravam o futuro que viria – ou que não viria – desconhecendo o que a vida poderia fazer à seu amor. Naquele momento eles simplesmente viviam a paixão, alheios ao resto. Tinham o presente e um mundo aparte, apenas deles, naquele lugar. A cena termina com o olhar inocente e ainda não afetado de Jack, e o plano seguinte mostra o mesmo homem vinte anos depois, com um olhar que evidencia o desgaste daqueles anos. E rever aquele amor ingênuo, que se permitia despreocupado, já tendo agora consciência do destino que ele terá, dilacera o espectador. Compartilhamos aquilo com Jack, devastados como ele por algo tão intenso que não pôde ser plenamente vivido. Tudo o que aqueles dois homens têm depois de tanto tempo é Brokeback Mountain.
Aqui não há técnicas brilhantes que chamem a atenção. A direção de Ang Lee é competente, mas nada de genial. A fotografia, ajudada pelo cenário majestoso, é de uma beleza comum e o que faz de melhor é contribuir nos enquadramentos. A montagem traz uma idéia mais conceitual, dando a impressão de que a trama lança coisas novas à todo momento, que não têm tempo de se instaurar, o que acredito ser parte da idéia. A música arrebatadora, repetida durante todo o desenrolar da história sem soar cansativa, passa angústia e solidão. O roteiro magnífico é muito semelhante ao conto homônimo que o inspirou, mas desenvolve a premissa com mais delicadeza.
Brokeback Mountain emociona por explorar um amor verdadeiro, de uma maneira real. A paixão aqui afeta irremediavelmente não só os protagonistas, mas os outros ao seu redor. Não se pode mesmo ir contra uma força da natureza. O ser humano é apenas possuído e segue impotente. E assim, com seu jeito, o longa é triste, forte e maravilhoso. Quisera eu ser capaz de, como sugeriu um amigo, fazer o prazer que sentimos ao ver o filme se prolongar nesse texto.