Obrigado por fumar

“Jordan faz cestas. Manson mata pessoas. Eu falo. Cada um tem seu dom”. Esse não é o início, mas o final da história de Nick Naylor. O personagem vivido por Aaron Eckhart é o principal porta-voz da indústria do tabaco, um lobista das grandes empresas de cigarro que ganha a vida manipulando informações para defender os direitos dos fumantes nos Estados Unidos, enquanto tenta ser um exemplo para o filho Joey (Cameron Bright). Obrigado por fumar (Thank you for smoking, Estados Unidos, 2006) é inteligente, cínico, auto-depreciativo, escancarado, ousado e talvez mais. Explorando um humor refinado e ao mesmo tempo agressivo, usa a metalinguagem como ferramenta para o escárnio e exige do espectador não apenas senso de humor, mas um verdadeiro gosto pelo sarcasmo.
O filme dirigido por Jason Reitman é absurdo exatamente por fazer todo sentido. Assim como seu protagonista, é dotado de flexibilidade moral e se abstrai de qualquer tentativa de ser edificante. À medida que aumenta sua visibilidade, Nick é perseguido por um senador oportunista (o sempre incrível William H. Macy) e enganado por uma jornalista sedutora (a sempre insossa Kate Holmes), ligações perigosas que quase põe fim à sua vida e à sua carreira, respectivamente. Com seus altos e baixos o personagem se mantém o tempo todo em conformidade com aquilo que é, mesmo depois do ponto de virada. No final da história, Nick consegue ser o exemplo que queria para o filho, sem impor a Joey e ao público uma visão considerada “certa” e um comportamento moral. Ao contrário. Dentro de seu pragmatismo, ele é sempre coerente com as idéias que defende, personificando a máxima de que qualquer ponto de vista pode estar certo, desde que bem argumentado. O essencial é a liberdade de escolha.
O que não faltam ao longa são qualidades para serem elogiadas. O roteiro adaptado do livro de Christopher Buckley (que aparece como figurante) é filmado com talento e as cenas bem construídas são emolduradas pela ótima fotografia de Jim Whitaker. A trilha sonora elegante e clássica cai como uma luva na composição do sarcasmo e do irresistível cinismo do texto. O bom elenco, escolhido com esmero pelo diretor, dá o toque final.
Mas um dos mais saborosos trunfos se esconde em um requinte que evidencia a inteligência do enredo: a maneira como a indústria do cinema é exposta ao ridículo sem pudores, dos primórdios da aparição do filme falado em 1928 até a poderosa figura do produtor contemporâneo, interpretado por Rob Lowe. Para ilustrar como o cinema clássico fez bem à indústria do tabaco, Nick cita, por exemplo, o onipresente cigarro nas mãos da intensa Bette Davis e a primeira cena de Humphrey Boggart e Lauren Bacall, dupla icônica do charmoso gênero noir, o casal mais famoso do mundo (nas palavras de Naillor), dentro e fora das telas. Seus argumentos são fascinantes e sempre convincentes. A seqüência em que Jeff Megall (Lowe) narra uma possível cena a ser protagonizada por Brad Pitt e Catherine Zetta Jones, fumando nus em uma nave espacial depois do sexo, é impagável. “Mas o cigarro não explodiria com oxigênio do espaço?”, questiona Nick. “Nada que não possa ser ajeitado com uma fala no roteiro”, tranqüiliza Megall. O sarcasmo é tão completo que lança ao ridículo não só o cinema, mas também o público, condicionado a comprar idéias disfarçadas de um entretenimento inofensivo.
Doak Boykin, o “poderoso chefão” do tabaco interpretado por Robert Duval não se separa do charuto nem quando está com as veias entupidas em um leito de hospital, mas é interessante reparar que nenhum ator é visto fumando um cigarro durante todo o filme. Não espere sair doutrinado do cinema. Obrigado por Fumar escancara o contra-senso e o humor negro da situação que explora com elegância, respeito à sutileza e um comedimento disfarçado que o tornam especial. Se há uma moral nessa história, ela é: “pense por conta própria e, então, escolha o seu lado”. Ou não escolha nenhum.