quinta-feira, novembro 17, 2005

Manderlay

Manderlay é o segundo capítulo da trilogia USA – Land of Oportunities, concebida pelo dinamarquês Lars von Trier para bombardear a sociedade norte-americana. O estilo é o mesmo visto em Dogville, o primeiro título da série, de 2003. Depois do impacto visual sentido no filme anterior, que inovava causando incômodo e estranheza pela quase ausência de cenário e pela estética mais caracteristicamente teatral do que cinematográfica, em Manderlay esse artifício tornou-se um signo já reconhecível pelo espectador. Mais que reconhecível, tornou-se decifrável com uma maior facilidade.
Lars von Trier rompe novamente com pontos do movimento que ajudou a criar, o Dogma 95. Apesar de o cenário não contar com mais do que o necessário para que a história se desenvolva, a gravação é feita em estúdio, sem o uso exclusivo da câmera na mão, há luz externa e uma tímida - mas presente - trilha sonora (proibições estipuladas pelo Dogma). Em Dogville a inexistência do cenário tinha um sentido mais conceitual do que em Manderlay, servindo para evidenciar que a pequena cidade seguia sua vida sem que ninguém se desse conta do que acontecia entre quatro paredes invisíveis, ou que, por vezes, era impossível esconder o caráter de seus habitantes por mais que as aparências tentassem disfarçar. De qualquer forma, a escassez do cenário concentra as atenções na atuação do elenco - muito bom, de Danny Glover à Jonh Hurt, com sua narração sutil e cruelmente irônica - e no texto, fazendo crescer de uma forma quase incômoda o poder dramático da narrativa.
A nova trama se passa em outro canto isolado dos Estados Unidos. É 1933. Depois de sair de Dogville, Grace (aqui interpretada não por Nicolle Kidman, mas por Brice Dallas Howard, de A Vila, que cria uma protagonista mais rígida e menos inocente), em companhia do pai (Willen Dafoe) e de seu bando de gangsters, vai parar em Manderlay, uma fazenda onde os empregados negros continuam sendo escravizados. Moralmente correta, após a morte da senhora das terras, Grace decide intervir - o que parece ser uma metáfora relativa à conduta de George Bush no Iraque - e supervisionar um novo tipo de relação entre os escravos agora libertos e a família branca de patrões. Mas os limites de sua benevolência serão mais uma vez testados nesse lugarzinho aparte do mundo.
Por trás da pureza de intenções de Grace, de seu modelo de conduta moral e de sua nobreza há, talvez, um grave complexo de superioridade. Ela acredita saber mais do que qualquer um o que é certo e justo, e seu comportamento hostil em relação ao pai - cujos princípios condena, mas dos quais não consegue fugir - tem muito disso. Em Manderlay ela usará seu poder, o de coerção através da força, para impor sua visão de liberdade e tentar construir na fazenda uma democracia perfeita. Os escravos eram regidos por um sistema de controle baseado na psicologia, ainda mais aterrorizante e complexo do que parece ser a princípio. Eram divididos em classes numeradas, abrangendo cada uma delas um tipo psicológico. Viviam apáticos, acostumados a essa que era sua forma de sobreviver e de conviver harmonicamente. Harmonia que será abalada com a presença de Grace e sua tentativa de democracia, pois, estariam os habitantes de Manderlay preparados para tal experiência?
O governo do povo tem ainda o perigo de cair na ditadura da maioria. E como Grace deveria agir quando uma decisão da maioria fere seus imaculáveis princípios? O que ela deveria fazer quando não consegue evitar de sentir-se tentada pela sensualidade latente dos negros?
Manderlay, com toda a sua crítica ferrenha e discussões metafóricas sobre a sociedade americana, é um filme que gera mais perguntas do que respostas. O diretor não deixa clara aqui sua visão pessoal sobre as questões que propõe. A mais recorrente delas é: os escravos libertos estariam prontos para o mundo livre e esse mundo livre estaria pronto para eles? Após a abolição, essa sociedade deu algum passo para integrá-los e fazer com que se sentissem cidadãos desse mundo como outros quaisquer? Ou a América, personificada em Grace, não é capaz de ver que as marcas da escravidão não podem ser corrigidas com a simples abertura dos portões do escravismo?
O que Lars Von Trier pretende com sua trilogia não é divertir o público, mas fazer vir à tona a hipocrisia que acredita estar imersa na sociedade do país que se proclama líder do mundo livre. Se você estiver disposto a levar mais um soco no estômago dirigido por Trier, entre numa boa sala de cinema e não tenha pudores de se incomodar com as infindáveis - e, por que não, necessárias - discussões que essa obra suscita. E não espere sair de lá com respostas em mente. Manderlay expõe a doença, mas não pretende apontar sua cura.

7 Comentários:

Às 7:02 PM , Anonymous Anônimo disse...

Nossa, cada vez melhor! Sou suspeita pra falar de qq coisa que se relacione a dogville pq eu adoro.

Gosto muito do modo como vc avalia o filme e a construção das personagens.

sem falar que esse blog cheeeeeio de bolinhas ta lindo! amo bolinhas°°°°°

 
Às 9:15 PM , Anonymous Anônimo disse...

eu tb adoro bolinhas!!!
e, por sinal vc percebeu né? o meu tb está cheio delas!! obrigada pela visita!!

 
Às 9:17 PM , Anonymous Anônimo disse...

hu-hu!!! faz bem em mudar!! adorei a descrição, humor negro! fundo negro!! ótimo!! estou gostando da nova maneira como vc se posiciona!
logo mais comento mais!! bjo

 
Às 9:17 PM , Anonymous Anônimo disse...

última coisa - por hoje- cada um tem seu jeito. gosto do seu jeito de escrever..!!

 
Às 10:37 AM , Blogger Isabella Goulart disse...

Obrigada pela força pessoas! Foi muito difícil escrever sobre Manderlay, é um filme bem complexo... E depois de escrever vi que minha crítica diferiu bastante das outras que li. Mas resolvi manter minha opinião e deixar as impressões que tive sobre ele... =D

 
Às 9:23 PM , Anonymous Anônimo disse...

Aí Isabella, vc tah escrevendo mto mto mto bem! cacete! essa critica do manderlay ficou imensamente foda! e ficou num tom bem critico! eu geralmente qnd leio o texto de alguem, imagino a voz do autor narrando durante minha leitura, mas seu texto ficou tao imparcial e duro q nem pude ouvir seu doce sotaque do interior!!! parabens, menina! continue assim! bjos!

 
Às 10:55 PM , Blogger Isabella Goulart disse...

Ah, que fofo! É por essas e outras que amo J. C. Oliver! Adoro ver os comentários dos meus amigos aqui! Principalmente os construtivos! Mas assim, como sou um ser humano evoluído eu tb aceito comentários negativos... Só não garanto que os responsáveis por eles vão figurar na minha lista VIP qdo eu for rica, adorada e mundialmente famosa... =P

 

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