sexta-feira, março 31, 2006

A Máquina


A história que eu vou contar agora é uma daquelas com sotaque bem nordestino. É história pra lá de bonita, acontecida nos tempos de Antônio, num lugar longe que só a gota. Esse lugar bem muito longe se chamava Nordestina e de tão distante que era, nem se via no mapa. Foi lá que o tempo achou por bem apadrinhar um amor tão forte que não achava palavra pra se medir. Antônio se apaixonou por Karina e Karina por Antônio. Mas Nordestina era pequena demais para os sonhos da menina bonita que queria ganhar o mundo. E pra não perder seu amor para o destino, Antônio, que nunca quis mesmo deixar seu pequeno cenário, inventou de enfrentar a geografia, a economia, a sociologia, a filosofia e foi buscar esse tal mundo que Karina tanto queria, ainda que esse mundo, assim meio troncho, não lhe parecesse um mimo dos melhores.
A Máquina (Brasil, 2006) não leva um mundo desconhecido apenas aos seus personagens fictícios. O filme marca também a estréia do diretor João Falcão em um novo universo, por trás das câmeras do cinema, e o caminho que essa história percorreu para chegar até aqui seguiu o rastro do sucesso. O romance homônimo de Adriana Falcão, publicado em 1999, foi primeiro adaptado para os palcos por João, um pernambucano já renomado dentro do teatro brasileiro, e nesse processo novas cenas foram criadas. Estimulado pela boa recepção da peça, João Falcão, co-roteirista de filmes como Lisbela e o Prisioneiro e O Coronel e o Lobisomem, decidiu transpor a saga de Antônio para a telona, se aventurando na direção. Levou consigo a bagagem já adquirida e os quatro atores que representaram o protagonista nos palcos. Na peça, o papel era interpretado de uma só vez por Lázaro Ramos, Vladimir Brichta, Wagner Moura (que no filme fazem participações especiais) e Gustavo Falcão, mas o diretor optou por simplificar no cinema e utilizar apenas dois intérpretes. Aqui, o Antônio jovem é vivido por Gustavo e o Antônio do futuro por Paulo Autran. A semelhança de sobrenomes não é mera coincidência. Gustavo Falcão é sobrinho de João, que é marido de Adriana. Na nova adaptação, outras cenas foram criadas no roteiro, várias locações foram visitadas para compor a cidade de Nordestina e A Máquina foi se encaixando no espaço retangular da tela, até que essa “parceria de família” chegasse aos cinemas com a feição bonita que ganhou.
A trama toca em temas de reflexão social, como o poder da mídia e a fuga da vida sem recursos do sertão, mas sempre de forma poética e bem humorada para contar seu romance, a imensa história de amor que preenche o filme todo. A clássica luta do herói e da heroína (Mariana Ximenes) contra o destino fatal que pode separá-los ganha combustível renovado pela originalidade desse filme, herdada das formas anteriores que lhe deram origem e agraciada pela invencionice brasileira. Os elementos fundamentais dessa narrativa são a palavra, o tempo e a estética. O poder da língua portuguesa é explorado ao máximo para compor o romance através das palavras que saem da boca de seus personagens. Diálogos rápidos, inspirados e graciosamente confusos já foram empreendidos em O Auto da Compadecida e Lisbela e o Prisioneiro, mas aqui eles atingem a plenitude de seu potencial e de sua eficiência, brincando com a metalinguagem de maneira critiva e inteligente. Chega a ser impressionante a capacidade do roteiro em dizer a coisa certa, no momento certo, até mesmo quando a idéia é não saber o que dizer. Uma lição de delicadeza e lirismo genuinamente brasileiros. O tempo se torna um personagem maleável e interage com o protagonista. Para não perder Karina para o mundo, Antônio constrói uma máquina capaz de transportá-lo ao futuro, onde estará o seu "eu" 50 anos mais velho. No desenrolar dos acontecimentos, só o Antônio do futuro poderá salvar o do presente, evitando que aquela viagem no tempo tenha sido em vão e que ele passe a vida inteira longe de Karina. Com seu "eu" ensandecido, o herói vai aprender a criar o destino em uma das passagens mais poéticas e comoventes da história. A estética incomum, dominada pelo cenário teatral tão destoante do realismo habitual no cinema, dá a cara de Nordestina. Aquela cidadezinha pode ser lugar nenhum ou qualquer lugar do sertão. Cada um desses elementos é fundamental para desenvolver a linguagem não-realista, própria da história, e para dar veracidade ao seu caráter fabuloso.
O elenco parece embarcar nessa viagem absurda com prazer e talvez por isso saiba fazer o público rir, suspirar e se emocionar com tanta habilidade. Gustavo Falcão não faz o tipo protagonista de novela. Mas a doçura, a voz envolvente e a segurança com que circula da inocência à esperteza cheia de artimanhas tornam-no mais encantador do que qualquer aspirante a galã. Mariana Ximenes é indiscutivelmente bela e oferece uma interpretação intensa e meiga sem passar da medida. Paulo Autran dispensa qualquer adjetivo, sua presença é sempre deliciosa. Lázaro Ramos, como um lunático, Vladimir Brichita, como o sedutor barato José Onório e sobretudo Wagner Moura, como um apresentador de TV bem ao estilo João Kleber, se confirmam como participações realmente especiais em seus pequenos, mas ricos papéis. No elenco competente destaca-se também a comediante Fabiana Carla e toda a sua graça nordestina como Dona Nazaré, mãe de Antônio.
Yes, nós temos cinema. Com um roteiro primoroso, uma direção consciente e um ritmo dinâmico, A Máquina é o tipo de produção que faz o espectador brasileiro sorrir no cinema ao lembrar que nem só da costumeira falta de originalidade da Globo Filmes vive o nosso mercado. E como é bom perceber que, seja pela publicidade ou simplesmente pela qualidade do material, uma história linda como essa é capaz cair nas graças do público. Se eu fosse você não perderia esse filme por nada. Afinal, quem não quer um amor que de tão grande seja capaz de viajar no tempo e te dar o mundo de presente?

1 Comentários:

Às 8:22 PM , Anonymous Anônimo disse...

isabella, adorei essa tua crítica. pus um link no meu blog, ok?

bjs

 

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